“O Auto da Compadecida 2”: Sequência celebra com nostalgia gostosa a amizade de João Grilo e Chicó | 2024
Há quase 25 anos, mais precisamente nos anos 2000, o cinema nacional nos traria aquele que se tornaria um dos grandes clássicos já produzidos por aqui. “O Auto da Compadecida”, originalmente uma peça teatral em forma de auto, em três atos, escrita por Ariano Suassuna em 1955, ganhou sua primeira encenação em 1956, no Recife, em Pernambuco, pelo dramaturgo João Cândido. Qual não foi a nossa sorte, o grande público, quando Guel Arraes, através do roteiro de Adriana e João Falcão nos deu de presente uma versão para os cinemas, ampliando ainda mais a popularidade dessa obra que tem influências de “Decamerão”, clássico de Giovanni Boccaccio, poeta, crítico literário Italiano e considerado um dos precursores do humanismo, um movimento super importante para o Renascimento Italiano.
Chicó e João Grilo, a dupla mais querida do cinema, está de volta a Taperoá. Dessa vez, passados vinte anos, João Grilo (Matheus Nachtergaele) retorna a cidade e reencontra com seu fiel escudeiro e amigo Chicó (Selton Mello), que leva adiante a história de que Nossa Senhora operou um milagre e ressuscitou o amigo. João Grilo, então, agora é considerado uma espécie de santo e seu status de celebridade chama a atenção dos dois políticos mais influentes da região, Arlindo (Eduardo Sterblitch) e Coronel Ernane (Humberto Martins) , que pretendem utilizá-lo como cabo eleitoral. Vendo toda essa comoção como uma oportunidade para finalmente sair da dureza, João Grilo arquiteta com Antônio do Amor (Luís Miranda), um amigo antigo, mais um de seus famosos trambiques. Como sempre nada sai muito certo para Grilo e o passado se repete na vida desse amável sertanejo paraibano.
No novo filme, Taperoá vive o progresso. Os cenários construídos em estúdio, diferente da linha naturalista executada no primeiro longa, aposta em cores mais quentes, e essa escolha, propicia novas perspectivas para esse novo momento. Como por exemplo a representação da rádio local, cujo proprietário e locutor, Arlindo (Sterblitch), também vende aparelhos de rádio assim como os demais eletrodomésticos, o que rende momentos hilários, sobretudo quando esse se aventura na política e encontra um coronel como oponente, Ernane (Martins). É impossível não fazer um paralelo com o momento atual no Brasil, quando a movimentação política se mistura com a religião, abusando da fé alheia para angariar votos, tendo como centro desse pandemônio, João Grilo, e novamente com um Matheus Natchtergaele entregando sequências tão cômicas quanto há 20 anos, ou seja, a marca do personagem permanece intacta e engajando o público da mesma forma.
Logicamente, mexer numa obra tão irretocável tem seus riscos, a comparação é absolutamente normal e pra mim, ao menos, só fica atrás pelo jogo de gato e rato dos protagonistas com o vilão, que no primeiro filme promovia sequências impagáveis com o cangaceiro vivido por Marco Nanini, ou ainda pela Compadecida de Fernanda Montenegro defendidos por ambos de maneira irrepreensível. Em todo o resto, e pensando na evolução do projeto para esses novos dias, o longa mantém o mesmo nível de excelência. A contextualização para os tempos atuais inclui uma Rosinha empoderada (Virgínia Cavendish), que foi atrás de seus sonhos e não depende mais de homem para ser feliz, um triângulo amoroso encabeçado por Fabíula Nascimento, e um trambiqueiro, Antônio do Amor (Miranda), que reforça o famoso mise-en-scène picareta eternizado por Grilo e Chicó. Miranda e Fabíula inclusive são excelentes acréscimos para a trama de Guel Arraes e Flávia Lacerda.
“O Auto da Compadecida 2” felizmente mantém o carisma conquistado há mais de 20 anos, com a química incrível de seus protagonistas , que nos dão a impressão de que o tempo não passou para João Grilo e Chicó. O timing, as piadas, a prosódia e a poesia de personagens de tamanha grandeza permanecem tal qual um dia conhecemos, celebrando uma das mais belas amizades que a dramaturgia promoveu. Essa longa parceria faz rir e chorar, ainda mais tendo como trilha “Canção da América”, música de Milton Nascimento e Fernando Brant, regravada por João Gomes. E aliás em se tratando de trilha, vale destacar “Fiadeira”, de Juliano Holanda, na voz de Maria Bethânia, outro momento emocionante da história quando a Compadecida de Taís Araújo surge.
A sequência de “O Auto da Compadecida” honra o legado de Suassuna e novamente deve levar multidões aos cinemas, não somente por renovar o diálogo com os novos públicos, mas por ter personagens tão apaixonantes que sempre haverão de dançar no grande baile da memória afetiva de todos nós.