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“Lispectorante”: longa busca ares clariceanos ao propor uma oxigenação do corpo pelo sentir | 2025

“A salvação é pelo risco.”

Sempre que algum mestre da escrita é evocado pelo cinema, torna-se comum a curiosidade sobre como o estilo que tornou sua escrita algo único será transposto para a linguagem audiovisual. O exemplo recente mais bem sucedido foi a brilhante adaptação feita por Bia Lessa para o monumento literário chamado “Grande Sertão: Veredas” de Guimarães Rosa. E assim que as primeiras notícias sobre “Lispectorante” começaram a surgir, um inegável interesse foi fomentado na mente de quem é fã da obra da autora de joias como “A Paixão Segundo G.H.” e “Laços de Família”.

Estrelado por Marcélia Cartaxo, a eterna Macabéa da clássica adaptação de “A Hora da Estrela” (1985), o longa dirigido por Renata Pinheiro (do ótimo “Carro Rei”) acompanha Glória, uma artista plástica recém-divorciada que atravessa uma crise financeira e que volta para Recife, onde se depara com a antiga casa em que viveu a célebre escritora. A partir do encontro com esse espaço, a personagem entrará numa jornada reflexiva sobre sua relação com o mundo, sua profissão e com as pessoas que a cercam; e nesse quesito, tudo fica mais intenso quando ela topa na rua com o andarilho interpretado por Pedro Wagner.

É possível observar que o roteiro escrito pela diretora e por Sergio Oliveira embaralha diversos elementos da vida e obra de Clarice. Além da já mencionada casa (que, por enquanto, segue à espera de uma revitalização), outros símbolos como a estátua presente na praça Maciel Pinheiro e referências a traços marcantes dos livros da autora ganham novos contornos. Há, por exemplo, muita ironia no fato de Marcélia (outrora Macabéa) interpretar justamente uma mulher que se chama Glória, nome daquela que representa sua antítese no quesito sexualidade tanto no livro quanto no filme de Suzana Amaral. E por falar em sexo, como é bom ver a atriz paraibana de 61 anos, uma legítima bandeira de nosso cinema, expondo-se lindamente na pele de uma mulher ávida por dar vazão aos seus desejos.

Fica evidente que Renata quis edificar uma aura clariceana ao lapidar sua narrativa. Não se trata aqui de uma trama convencional, focada majoritariamente nas ações dos personagens e nas suas eventuais consequências. O que tanto roteiro quanto direção propõem é uma espécie de viagem sensorial através das pequenas epifanias vivenciadas pela protagonista. Tenta-se, então, trazer à baila o lirismo dos textos de Clarice através de uma espécie de poética da banalidade, reforçada por planos como os que trazem um saco plástico voando ou um outro no qual seguimos um espelho refletindo a luz do sol por onde passa e, claro, pelo belo colorido criado pela fotógrafa Wilssa Esser.

Contudo, nem sempre a atmosfera delirante que permeia o projeto funciona. Há uma incômoda desconexão entre o romance estabelecido pelo fiapo de história, o imbróglio envolvendo uma herança e os momentos oníricos em que a figura encarnada por Grace Passô se mostra bastante deslocada de qualquer eixo temático ou estético para além do mero estranhamento. Tal desarranjo se deva, talvez, pela adesão a uma carnavalização pouco azeitada, que parece sobrepor de maneira um tanto aleatória de passagens que pouco acrescentam ao aparente propósito de fazer de Clarice um sopro de vida em meio às incertezas e angústias nascidas com o surgimento da Covid 19.

Com notórios resquícios do período pandêmico, “Lispectorante” busca a oxigenação pelo sentir. Entretanto, apesar de seu sedutor colorido de sombrinha de frevo, temos um filme que se perde ao abandonar a certa altura a água viva da qual prometeu beber até a última gota.

Alan Ferreira

Professor, apaixonado por narrativas e poemas, que se converteu ainda na pré-adolescência à cinefilia, quando percebeu que havia prendido a respiração ao ver um ônibus voando em “Velocidade Máxima”. Criou o @depoisdaquelefilme para dar vazão aos espantos de cada sessão e compartilhá-los com quem se interessar.

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