“Ligação Sombria”: De ritmo frenético, longa destaca excentricidade ao estilo Nicolas Cage | 2024
A canção “Sympathy for the Devil”, lançada pela banda britânica The Rolling Stones em 1968, aborda de maneira provocativa e ambígua a questão do bem e do mal. Com referências à Revolução Russa, à Segunda Guerra Mundial e aos assassinatos de John e Robert Kennedy, a letra apresenta um diálogo direto com acontecimentos históricos marcados por violência.. O uso da palavra “sympathy”, que comumente sugere compaixão ou compreensão, em associação com “the devil” cria uma tensão, desafiando a moralidade tradicional ao insinuar uma empatia pelas “forças do mal” e questionando a linha tênue entre o certo e o errado. O filme “Ligação Sombria”, cujo título original é justamente “Sympathy for the Devil”, ressoa com essa dinâmica ao explorar como as atrocidades não são meramente fruto de uma entidade maligna, mas das escolhas humanas. No entanto, enquanto a canção oferece abstrações e sutilezas, o longa opta por uma abordagem mais explícita, desenvolvendo um thriller frenético, marcado por maneirismos e excentricidades características do estilo de Nicolas Cage.
Sob a mira de uma arma, um homem (Joel Kinnaman) é forçado a transportar um passageiro misterioso (Nicolas Cage), mergulhando em um jogo perigoso de gato e rato, onde as aparências enganam e a verdade é constantemente desafiada.
A omissão dos nomes na sinopse é intencional, já que parte do mistério reside na identidade dos envolvidos, especialmente na do passageiro. De forma eficaz, o filme constrói uma premissa intrigante e, em sete minutos, estabelece uma sensação de estranheza e perigo iminente. Contudo, esses aspectos acabam se diluindo, em grande parte devido à repetição e a uma progressão rítmica que avança aos solavancos. Assim, tal como um sapo posto na água quente, o suspense salta para fora, deixando apenas uma estrutura rasa e sem conteúdo.
O ambiente urbano e certas cidades em particular costumam ser retratados quase como personagens à parte, e muitas delas já possuem lugar cativo no nosso imaginário. Por já termos ideias pré-concebidas sobre lugares como São Francisco, Nova York, Detroit ou Miami, elas conseguem transmitir diferentes atmosferas sem a necessidade de maiores explicações. Basta o icônico letreiro de “Hollywood”, por exemplo, para sabermos que estamos prestes a ver uma história ambientada no coração do cinema.
Resta a pergunta: o que vem à mente ao ver o letreiro luminoso de “Las Vegas”? Certamente, a imagem dispensa maiores explicações. Em “Ligação Sombria”, a conexão com a cidade até tem uma justificativa, mas, além de precisar ser verbalizada em diálogos, revela-se unicamente um artifício do roteiro para resolver o mistério, ou parte dele. A cidade, em si, carece de vida. As estradas são desertas, assim como as calçadas e qualquer outro cenário que poderia oferecer um desafio narrativo. O enredo é tão frágil que tudo ao redor precisa ser esvaziado para que a trama funcione — e, mesmo assim, não funciona. Personagens secundários surgem, como policiais que mais parecem NPCs (personagens não jogáveis) de videogames, simples ferramentas de interação direta. Em uma sequência dentro de uma lanchonete à beira da estrada, vemos estereótipos previsíveis: um caminhoneiro, uma mãe com seu filho pequeno, uma garçonete entediada e um cozinheiro bonachão. Todos vazios, sem profundidade, meras peças de um roteiro e sem relevância.
Nicholas Cage é um ator de fases. Após alcançar enorme sucesso nos anos 90, incluindo a conquista de um Oscar por “Despedida em Las Vegas” (1995), sua trajetória sofreu uma guinada descendente, influenciada principalmente por questões financeiras. Essas circunstâncias o levaram a seguir um caminho bastante diferente daquele que havia trilhado até então. Já nos últimos anos, Cage tem oscilado entre essas duas fases — pré e pós anos 2000 — entregando algumas atuações dignas de sua melhor forma, como em “Mandy” (2018), “A Cor que Caiu do Espaço” (2019), o excepcional “Pig” (2021) e o recente “O Homem dos Sonhos” (2023). O problema (dentre muitos outros) de “Ligação Sombria” reside justamente na aposta no estereótipo de Cage, limitando-o à faceta visceral e exageradamente teatral. Ao final, o que resta é um longa desequilibrado e monotemático, que consegue, de forma quase inexplicável, transformar tensão em tédio.