“Kasa Branca”: longa oferece um olhar que celebra a força da coletividade em meio a adversidade | 2025
A representação da favela no cinema brasileiro tem sido, ao longo das décadas, um tema recorrente, refletindo diferentes formas de abordagem entre o retrato crítico e o sensacionalismo. Na virada do século, produções de grande impacto internacional, como “Cidade de Deus” (2002) e “Tropa de Elite” (2007), retrataram as favelas principalmente como espaços marcados pela violência, o tráfico de drogas e a corrupção policial. Apesar do reconhecimento global, essas obras enfrentaram críticas por perpetuar estereótipos e espetacularizar realidades complexas. Por outro lado, nas décadas de 1960 e 1970, cineastas como Nelson Pereira dos Santos e Cacá Diegues ofereceram um olhar mais humanizado. Filmes como “Cinco Vezes Favela” (1962) retratavam histórias que abordavam exclusão e exploração, sem deixar de evidenciar a resistência e a dignidade dos moradores.
Mais recentemente, uma nova geração de cineastas, frequentemente oriunda das próprias comunidades, tem se destacado por revitalizar a maneira como esses territórios são retratados no cinema. Essa mudança vai além de uma evolução temática, refletindo também transformações nos bastidores, com equipes criativas mais diversas e próximas das realidades que retratam. Ao invés de reforçar os clichês tradicionais, esses filmes exploram as favelas como espaços dinâmicos, marcados por contradições, mas também repletos de coletividade e riqueza cultural. Entre os nomes mais proeminentes, Luciano Vidigal se destaca com “Kasa Branca”, uma obra que rompe com estigmas ao iluminar a vida cotidiana e a vibrante complexidade desses locais.
Na trama, acompanhamos Dé (Big Jaum), um jovem morador da periferia da Chatuba, no Rio de Janeiro, que enfrenta os desafios de cuidar de sua avó Almerinda (Teca Pereira), diagnosticada com Alzheimer em estágio avançado. Carregado de responsabilidades, mas com poucos recursos, Dé encontra suporte em seus melhores amigos, Adrianim (Diego Francisco) e Martins (Ramon Francisco), que compartilham com ele as dificuldades e momentos de descontração.
Um dos aspectos mais marcantes de “Kasa Branca” está no uso de planos abertos que capturam as paisagens icônicas do Rio de Janeiro, como o Morro da Urca. Esses enquadramentos vão além do capricho estético, funcionando como ferramentas narrativas que evidenciam o contraste entre o esplendor natural da cidade e a precariedade enfrentada pelos personagens. A desigualdade social está presente em cada detalhe da narrativa, ampliando a percepção de que o cartão-postal globalmente famoso e o cenário de dificuldades coexistem no mesmo espaço. Essa abordagem lembra, em certa medida, o que Sean Baker realizou em “Projeto Flórida” (2017), ao destacar as contradições entre a magia dos parques temáticos e a realidade das comunidades vizinhas.
Embora “Kasa Branca” tenha uma atmosfera densa e carregada de emoções, o filme encontra espaço para cenas leves, repletas de sorrisos genuínos e um senso palpável de comunidade. Essas passagens não são meros alívios cômicos ou dramáticos, mas partes essenciais de uma realidade plural que não se reduz às adversidades. Os personagens são apresentados de forma multidimensional, com sonhos, paixões e desejos, conferindo autenticidade à narrativa e à vida retratada.
Luciano Vidigal encara os desafios com uma abordagem sóbria, evitando soluções fáceis ou apelos exagerados ao sofrimento. O filme reafirma o papel do cinema como ferramenta de transformação, capaz de desconstruir estigmas e revelar novas formas de enxergar o cotidiano das favelas. Mais do que sensibilizar o público, a obra suscita reflexões profundas sobre as desigualdades estruturais do Brasil contemporâneo e a urgência de mudanças.