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“Iracema – Uma Transa Amazônica”: relançado em 4K, filme segue atual como documento que atesta as múltiplas devastações ocorridas no Brasil | 1975

“Ninguém segura esse país”.

Lançado em 1981, depois de ficar cinco anos censurado, “Iracema – Uma Transa Amazônica” é daqueles filmes que arremessam na tela como o Brasil percorre um triste caminho de mazelas que se sobrepõem e se repetem como num círculo vicioso que parece infinito. Os cinquenta anos que nos separam da finalização de suas filmagens só comprovam a incapacidade (ou seria má vontade?) de nossos governantes na lida com questões latentes no que diz respeito à difícil equação que envolve progresso, preservação ambiental e respeito aos povos originários.

Projeto realizado sob a encomenda da emissora de TV alemã ZTF, o longa dirigido por Jorge Bodanzky e Orlando Senna deflagra a devastação florestal e a consequente degradação da população que se posiciona às margens da BR 230, a chamada Transamazônica. Símbolo do “Brasil Grande” bradado pelos militares durante a Ditadura Militar, a rodovia teria importante função estratégica na ocupação e exploração de uma região há muito tempo ambicionada e que, de acordo com a propaganda, solucionaria o problema da seca do Nordeste e promoveria uma “necessária” expansão agrária. Contudo, o que se vê de grandioso da boleia do caminhão pilotado por Tião (Paulo César Pereio em grande atuação) é o rastro de destruição provocado por esse mal planejado empreendimento governamental.

A partir do encontro do caminhoneiro com ares de cafajeste e da jovem indígena Iracema durante o Círio de Nazaré, o roteiro de Senna vai se estruturar nos moldes do road movie para nos colocar como companheiros desses dois viajantes por um trajeto tortuoso, poeirento e bastante incômodo. Numa mescla de ficção e documentário, os realizadores utilizam a relação entre os dois personagens, um transportador de madeira (inclusive ilegal) e uma adolescente que só tem seu corpo como moeda de troca, para representar os múltiplos abusos que brotam das relações comerciais sem qualquer fiscalização e a miséria humana decorrente dessas práticas.

A câmera de Bodansky captura queimadas, tratores derrubando árvores e, durante as conversas de Tião (sempre com um tom galhofeiro) com os moradores de cada parada, extrai depoimentos reveladores – quando não deixam evidentes seu caráter encenado – acerca das péssimas condições encontradas por aqueles que se deslocaram para um lugar que foi visto como a nova El Dorado. Por outro lado, vez ou outra vemos planos um tanto questionáveis que parecem observar de modo fetichista o corpo da jovem indígena interpretada por Edna de Cássia, o que contradiz de certa maneira uma consciência que contestava aquela dinâmica exploratória aviltante.

Apesar dessas pequenas derrapadas, o olhar crítico se mantém de maneira incisiva na maior parte do percurso de “Iracema – Uma Transa Amazônica”. Seu ressurgimento em cópia restaurada se mostra necessário haja visto que ainda hoje nossas florestas sofrem ataques constantes como a PL 2159, ação que escancara a participação efetiva de boa parte da classe política brasileira em cada hectare perdido. E poucas cenas são tão representativas dessa ânsia pela passagem de muitas boiadas quanto a do reencontro, tempos depois, entre Iracema e Tião. Ele como representante do explorador atento às variações do mercado, que troca a madeira de sua caçamba por gado; ela, que outrora sonhava com uma vida em São Paulo tal como um país que vislumbra o progresso, agora se vê perdida e degradada no meio de um caminho qualquer. O Brasil, tão inacabado quanto uma de suas maiores estradas, ainda é o país do extravio.

Alan Ferreira

Professor, apaixonado por narrativas e poemas, que se converteu ainda na pré-adolescência à cinefilia, quando percebeu que havia prendido a respiração ao ver um ônibus voando em “Velocidade Máxima”. Criou o @depoisdaquelefilme para dar vazão aos espantos de cada sessão e compartilhá-los com quem se interessar.

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