“Ficção Americana”: Sátira racial contundente sobre mercado literário triunfa com atuação marcante de Jeffrey Wright | 2024
É difícil classificar “Ficção Americana” em um gênero só, porque o diretor e roteirista Cord Jefferson traduz sua obra ora em uma sátira hilária sobre a banalidade das engrenagens do mercado literário norte americano, ora sobre um drama familiar em que irmãos se unem para lidar com o Alzheimer da matriarca viúva e idosa. Em todas as subtramas que o filme se propõe a passear, Jefferson encontra potência no texto poderoso impresso nos diálogos dos personagens ricamente construídos, bem como na força do elenco liderado por um Jeffrey Wright que triunfa numa das atuações mais complexas de sua carreira.
No enredo, Thelonious ‘Monk’ Ellison, um escritor frustrado que há anos não emplaca uma obra literária relevante, sofre com discussões raciais acaloradas com seus estudantes na Universidade de Los Angeles. O Board da Instituição decide coloca-lo em licença temporária em face de seu comportamento instável com seus estudantes, fato que desencadeia a oportunidade de viajar para Boston e se reconectar com sua irmã, Lisa (a ótima Trace Ellis Ross), e sua mãe que começa a apresentar sinais de Alzheimer, Agnes (Leslie Uggams).
A porção do filme dedicada ao drama familiar de lidar com uma doença neurológica é explorada de forma séria e sensível, aqui o personagem de Jeffrey Wright precisa fazer as pazes com sua persona ranzinza, se relacionar com a irmã médica empática e lidar com a aparição de seu irmão caçula que recentemente se assumiu homossexual e guarda uma série de complexos sobre sua sexualidade. O irmão Clifford é interpretado pelo excelente ator Sterling K. Brown, mais conhecido pela série popular This is Us, que aqui tem a oportunidade de criar uma figura absolutamente cômica e ao mesmo tempo melancólica. Um determinado diálogo entre Monk e Clifford na varanda da casa de praia certamente contribuiu para Brown arrebatar indicações a Melhor Ator Coadjuvante no Oscar, Critics Choice Awards e SAG Awards.
A história familiar é entrecortada pelo mote principal do longa, que é a sátira em relação ao mercado literário contemporâneo de ”romances de aeroporto baratos”, especialmente do que é esperado da literatura que aborda questões raciais ou que se desenrolam em um contexto racial negro, tal qual livros como Push da escritora Sapphire. Em determinado momento, o editor de Monk afirma que seu último manuscrito simplesmente “não é negro o bastante”… Diante da incredulidade e frustração com o mercado literário, Monk decide fazer um teste e ceder às expectativas ao criar um romance altamente estereotipado sobre personagens negros no contexto de drogas, violência e morte. Ele intitula sua obra de “My Pafology” e assume um pseudônimo chamado Stagg R Leigh. Para apimentar a experiência Monk e o editor concordam em inventar que Leigh seria um prisioneiro foragido grosseirão que usa esse pseudônimo para se manter oculto e não ser localizado pelo FBI.
Há cenas hilárias em que Monk tem que fazer alinhamentos ao telefone com executivos brancos de editoras em Nova Iorque e refletir um modo de falar e de se portar totalmente avesso ao seu perfil acadêmico e sisudo. São nessas cenas que Wright tem a oportunidade de explorar sua veia cômica e fazer esse contraste entre a figura séria e travada de sua persona real e esse personagem cheio de gírias e trejeitos criado para sustentar a farsa literária. Não é preciso dizer que “My Pafology” vira um best seller e o desenrolar dessa história fica cada vez mais saboroso.
Cord Jefferson brinca com metalinguagem, com recursos narrativos criativos e com uma boa dose de sarcasmo na construção de seu roteiro, o que apimenta o filme com cenas completamente nonsense como a participação do ator Adam Brody (The O.C.) como um produtor de cinema altamente interessado em adaptar o best seller de Monk para o cinema.
“Ficção Americana” enfrenta uma concorrência pesada na categoria de Melhor Roteiro Adaptado deste ano, talvez a categoria que mais tenha chance das 5 indicações ao OSCAR. Se sair da noite da premiação de mãos abanando será lamentável, mas será um sinal que a Academia pode não estar ainda preparada para textos ácidos como este, afinal premiar “Oppenheimer” pode ser uma escolha bem mais “segura” nessa altura do campeonato.