Festival do Rio: “Meu Bolo Favorito”, de Maryam Moghadam e Behtash Sanaeeha | 2024
O cinema é um instrumento político desde o nascimento, ainda no século XIX. Em 1897, foi lançado “Laveuses sur la rivière” (Lavadeiras no Rio), produzido e dirigido pelos irmãos Lumière. O filme retrata lavadeiras à beira de um rio, lavando roupas à mão, um processo comum antes da industrialização. Embora a obra apresente um plano geral aparentemente simples, um detalhe sutil pode passar despercebido: no canto superior direito, três homens ociosos, bem-vestidos, observam de longe as mulheres trabalhando. A presença deles adiciona uma nova camada, sugerindo uma metáfora para a vigilância da classe dominante, destacando as desigualdades sociais e de gênero da época. Alguns estudiosos defendem que essa interação simbólica torna “Laveuses sur la rivière” o primeiro filme político da história.
Vencedor do Prêmio FIPRESCI de Melhor Filme no Festival de Berlim 2024, “Meu Bolo Favorito” apresenta uma história encantadora, por vezes melancólica, outras repleta de humor. A trama agridoce é envolta em uma delicada doçura, ao mesmo tempo que oferece um comentário social incisivo, expondo de maneira clara as opressões sofridas por diferentes grupos da sociedade iraniana ao longo de gerações.
Na trama, acompanhamos Mahin (Lily Farhadpour), uma mulher de 70 anos que vive sozinha em Teerã após a morte do marido e a partida de seus filhos para o exterior. Enfrentando a solidão, Mahin decide buscar companhia, desejando encontrar um parceiro. É assim que conhece Faramarz (Esmail Mehrabi), um taxista solteiro também na terceira idade, que se mostra receptivo às suas investidas. Juntos, eles embarcam em uma inesperada jornada de companheirismo, repleta de sorrisos e vinho clandestino, desafiando os costumes e restrições impostas.
O longa apresenta uma introdução cuidadosamente construída, permitindo-nos mergulhar na vida de Mahin antes de conhecermos Faramarz. Seus hábitos, como dormir até o meio-dia devido à insônia, o cuidado meticuloso com o jardim e os encontros cada vez mais raros com as amigas, são explorados com sutileza. Mesmo que esse primeiro ato seja um pouco mais longo que o convencional, ele nunca se torna monótono. Apesar de retratar uma rotina, o filme evita a repetição, pois cada momento revela uma busca por algo novo. Em meio à melancolia, surge uma esperança, um espírito cheio de afeto que acredita, profundamente, que a despeito da idade avançada, ainda há muito a ser vivido. Após cerca de meia hora de projeção, estamos completamente imersos não apenas nos hábitos de Mahin, mas, sobretudo, profundamente conectados com sua busca.
A interação entre os protagonistas, uma vez estabelecida, é marcada por uma doçura rara, especialmente considerando personagens idosos. A indústria cinematográfica, etarista como tantas outras, raramente investe em narrativas centradas em pessoas de idade avançada, e se tratando de romance esse número é ainda menor.
Há também um ponto de tensão significativo: os costumes e o rígido regime vigente no Irã. Essa opressão tem como principal agente, a temida polícia da moral, um grupo com poder para realizar prisões ao confrontar comportamentos que não se alinham às rigorosas normas impostas pelo Estado. Exemplos de contravenção incluem mulheres que não utilizam o hijab de forma adequada, expondo parte do cabelo, o consumo de bebidas alcoólicas, ou até mesmo o simples ato de duas pessoas que se amam, mas não são casadas, compartilharem momentos de afeto íntimo.
Dirigido por Maryam Moghadam e Behtash Sanaeeha, “Meu Bolo Favorito” reafirma a coragem dos cineastas em criticar o governo iraniano, uma atitude que, embora necessária, lhes trouxe sérias consequências. Dias antes de embarcarem para Berlim, onde o filme foi exibido, seus passaportes foram confiscados pelas autoridades e um processo judicial foi aberto contra eles. Essa não é a primeira vez que enfrentam esse tipo de situação, e grande parte desse sentimento está presente em “Meu Bolo Favorito”. Uma bela história de amor, mas que ao mesmo tempo clama por socorro.