Festival do Rio : “A Meia-Irmã Feia”, de Emilie Blichfeldt
Mais que uma releitura sombria, longa é um espelho da crueldade estética que marca o presente

As releituras de contos infantis não são novidade no cinema, muito menos no território do horror. Desde “A Companhia dos Lobos” (1984), que transformava a história de Chapeuzinho Vermelho em ritual de desejo e sangue, até “A Floresta Negra” (1997), versão sombria de Branca de Neve estrelada por Sigourney Weaver, cineastas encontraram nesses relatos aparentemente inocentes a matéria-prima para expor medos ancestrais e pulsões sexuais. Não era invenção gratuita, mas um retorno às sombras que já habitavam os contos originais, onde Chapeuzinho era devorada e Branca de Neve assistia à madrasta dançar até a morte em ferro incandescente. Com o tempo, essa brutalidade foi diluída em lições moral e depois recoberta de açúcar pela Disney, até que a memória do horror, sempre presente na fantasia, se escondesse sob a superfície do infantil.
“A Meia-Irmã Feia” retoma esse fio quase esquecido. Ao recontar a fábula de Cinderela pela ótica da meia-irmã rejeitada, o filme resgata a crueldade e o grotesco que rondaram os contos e os reinscreve no registro do “body horror”. O corpo da protagonista é transformado em território de disputa, deformado por dietas extremas, procedimentos cruéis e humilhações incessantes. Essa violência tem raízes na tradição oral que foi suavizada ao longo do tempo, mas também dialoga com o presente, em que a busca pela beleza e pela performance ainda funciona como forma de punição social.
A câmera insiste nas feridas da carne e nas marcas deixadas pela busca insaciável da perfeição. Como todo body horror que se afirma, há ecos de Cronenberg na maneira como o corpo se transforma em espetáculo de dor, assim como reverberações da ousadia de Julia Ducournau, onde a metamorfose física provoca simultaneamente repulsa e fascínio. O grotesco não aparece como exagero cômico, mas como escolha estética, filmada com uma beleza sombria que obriga o olhar do espectador a oscilar entre atração e rejeição.
Em alguns momentos o filme parece ceder ao excesso, e mesmo considerando que o body horror se alimenta dessa lógica, há passagens que soam como um passo além. Mas essa inclinação, por mais absurda que pareça, ainda encontra ainda encontra respaldo na realidade, como mostram os relatos de mulheres que compram ovos de tênia na dark web e os ingerem para emagrecer, submetendo o corpo a riscos extremos em nome de um ideal inatingível. O mesmo vale para o uso indiscriminado de medicamentos como o Ozempic, originalmente indicado para diabetes, mas transformado em ferramenta estética de rápida perda de peso, muitas vezes sem acompanhamento médico. Confrontado com esses exemplos, o grotesco de “The Ugly Stepsister”, no original, deixa de ser apenas exagero ficcional e se revela como comentário direto sobre uma sociedade que normaliza a autoviolência em nome da beleza.
“A Meia-Irmã Feia” reafirma, assim, a vitalidade das fábulas quando revisitadas com densidade estética e crítica. Mostra que esses relatos ainda guardam potência para interrogar o presente, desde que tratados não como mero pretexto para exploração sensacionalista, mas como matéria viva de medo, desejo e violência. Ao unir a crueldade dos relatos originais, a gramática visual do body horror e as inquietações contemporâneas em torno do corpo, o filme se destaca no panorama do horror atual como gesto raro de continuidade e reinvenção.