Festival do Rio 2024: “Canina”, de Marielle Heller | 2024
O amor materno é um instinto, uma inclinação inata feminina, ou um comportamento social condicionado por circunstâncias históricas e culturais? Essa é a pergunta que Elisabeth Badinter explora no livro “Um Amor Conquistado: O Mito do Amor Materno”. Por meio de uma análise histórica criteriosa e imparcial, Badinter sustenta que o instinto materno é uma construção cultural, não um comportamento universal. Inspirada por essa visão crítica, Marielle Heller oferece uma reflexão similar em seu mais recente filme, “Canina”, utilizando a fantasia e uma boa dose de absurdo para desconstruir concepções tradicionais sobre o papel materno e as expectativas sociais impostas às mulheres. O longa também marca o retorno triunfante de Amy Adams, que, com uma atuação poderosa, reafirma sua posição como uma das grandes atrizes de sua geração.
A trama acompanha uma mulher que interrompe uma promissora carreira artística após o nascimento de seu filho. Dedicando-se integralmente aos cuidados da criança, ela assume o papel de dona de casa enquanto o marido, constantemente ausente devido às longas viagens a trabalho, segue sua carreira. Vivendo em uma típica região de subúrbio, o isolamento e o estresse da nova rotina começam a afetar sua saúde mental, enquanto ela passa a observar mudanças radicais em seu corpo.
A extrapolação da realidade é uma ferramenta que permite histórias irem além do comum para abordar novas perspectivas. Em “Canina”, isso demanda uma considerável suspensão da descrença, já que a trama utiliza metáforas um tanto incomuns. Ainda que essa peculiaridade possa gerar alguma resistência, o filme apresenta simbolismos que são bastante acessíveis. Com diálogos e lembranças — especialmente envolvendo a figura materna — o longa sugere, por vezes de forma bastante didática, as causas dos fenômenos que afetam a protagonista. Termos como “instinto” surgem repetidamente, reforçando o tema de maneira clara. “Canina” não é um filme complexo; o que ele pede, mais do que conhecimento, é uma disposição emocional, ou, em outras palavras, coração aberto.
Embora o filme trate de um tema profundamente sério, ele também consegue trazer leveza por meio de diversas sequências de alívio cômico. Nessas cenas, Amy Adams se despe de qualquer vaidade geralmente associada a estrelas de seu calibre, entregando uma personagem vulnerável, mas que, ao mesmo tempo, busca se reposicionar no mundo, em uma jornada para encontrar novas formas de existir. A figura do pai também contribui para o humor; ainda que ele pareça infantilizado em certos momentos, ao observar mais de perto e com cuidado, fica claro que não se trata de uma simples paródia. Apesar de existir um toque de sarcasmo e caricatura, o retrato é, em muitos aspectos, realista e familiar.
Por fim, “Canina” é uma obra que captura com precisão o espírito de seu tempo, compreendendo o contexto cultural, social e intelectual contemporâneo. O filme reflete de maneira sensível e crítica o papel da maternidade, utilizando uma abordagem leve e divertida, que equilibra reflexão e humor. Um prato cheio para aqueles que se dispõem a se abrir ao novo e ao diferente, proporcionando uma experiência tanto provocativa quanto envolvente.