Festival de Vitória: “Centro Ilusão”
Fazendo da música sua razão de ser, filme de Pedro Diógenes encanta com a beleza da realidade ordinária

E eu respondi na mesma hora: Yoko Ono.
“A música dá vida à gente, não dá não?” – essa frase sozinha consegue resumir com muita justiça o teor daquilo que o longa-metragem “Centro Ilusão”, do cineasta Pedro Diógenes, carrega em suas entranhas. O filme manifesta uma atmosfera tão sensível quanto intensa, repleta de significações cotidianas permeando a declaração apaixonada que o filme é à arte – e isso é visto já desde os créditos iniciais, onde fios dos postes que compõem a paisagem urbana de Fortaleza se confundem na transição com as cordas de uma guitarra elétrica. Fica nítido um paralelismo entre os insólitos da vida e da música através de canções que, com suas melodias contagiantes e letras tão potentes e festivamente melancólicas, se propõem a refletir os encantos e desencantos de milhares de aspirantes sonhadores ao estrelato.
Existe um charme robusto em projetos musicalizados que se esquivam da facilidade de se tornarem musicais. Neles vemos musicistas performando como em um palco, sentindo aquilo que cantam enquanto, de fato, cantam. Assistir um filme assim é um exercício bem diferente da tradicional apreciação de números de cantoria espalhafatosa que surge do nada, em cenas recheadas de coreografias e orquestras invisíveis – que tem seu lugar na indústria e também podem ser, à sua maneira, excelentes. Essa abordagem mais “pé no chão” agrega uma profundidade muito maior à música, fazendo com que ela seja o centro da cena e, com isso, surtindo muito mais peso a cada palavra e nota proferida. Esse traço exprime a potência que existe na simplicidade de contemplar a música de forma crua, sem confetes ou grandes estímulos visuais – e desse caráter intimista “Centro Ilusão” não apenas entende como também é excepcional.
Se em musicais os personagens se comunicam através da música, em filmes musicalizados acontece o contrário: a música é que fala pelos personagens, e por meio deles mesmos. O que vemos nesse filme cearense, exibido na segunda noite do 32⁰ Festival de Cinema de Vitória, é uma tratativa poucas vezes vista no cinema brasileiro: uma metalinguagem abrangente, em que todo e qualquer artista há de se identificar. A trama simples carrega camadas de angústias que transpõem a bolha musical e abarcam todas as classes da arte, trazendo à tona a memória da existência de inúmeros talentos que, por conta da falta de oportunidades, não se revelaram. Na busca pela oportunidade de ingressar em uma oficina de música, Tuca e Kaio se conhecem após suas apresentações à banca de jurados, estando os dois competindo pela mesma vaga. De um lado está a experiência, no auge dos seus 50 anos, ansiando por uma nova chance; do outro está o fôlego da juventude sonhadora e idealista, que adentrando a maioridade já vislumbra no cenário musical uma possibilidade de futuro.
“Centro Ilusão” traz arranjos musicais para os desarranjos da vida. É aquele tipo de obra que o público, mesmo antevendo como terminará, inevitavelmente se vê na torcida para que tudo dê certo. A jornada dos protagonistas reverbera, inclusive, a do cinema brasileiro – onde conseguir espaço para a captação de recursos para tirar projetos do papel passa, de igual maneira, pela análise de bancas de jurados. Com uma fragilidade contraintuitivamente forte, Pedro Diógenes realiza o concerto e o conserto de sonhos partidos com uma sensibilidade ímpar, enquanto a dupla protagonista Fernando Catatau e Brunu Kunk entrega trabalhos belíssimos em suas encarnações aos potenciais rivais que se descobrem, um ao outro, como apenas duas versões de uma mesma história. Aqui o ordinário se revela como… ordinário mesmo, e clama por ser entendido e apreciado. A graça está no percurso, não na chegada ao destino. E assim, tratando o deslanchar de uma carreira na arte como uma miragem urbana ao qual se apegar, o filme se fecha brilhantemente como o grande incentivo que é ao persistir no próprio sonho.