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Festival de Cinema Europeu Imovision: “Síndrome da Apatia”, Alexandros Avranas

Em dezembro do ano passado, Brian Thompson, CEO da UnitedHealthcare, foi assassinado em plena luz do dia. O suspeito, Luigi Mangione, de 26 anos, foi preso dias depois e agora enfrenta acusações federais, incluindo homicídio com motivação política, uma vez que Thompson era visto como símbolo de um sistema que, ao negar cobertura de procedimentos médicos a associados dos planos de saúde, acumulava lucros à custa da vida e do sofrimento de milhares de pessoas. O episódio suscitou não apenas um debate sobre a brutalidade do ato, mas também sobre a maneira como a sociedade enxerga e hierarquiza a violência. A morte de um homem é, por princípio, compreendida como algo condenável. Já práticas corporativas que perpetuam sofrimento em larga escala parecem despertar menos repulsa. Uma distorção que ecoa em “Síndrome da Apatia”, novo filme de Alexandros Avranas, que constrói uma narrativa onde a violência direta e a indiferença caminham juntas, como faces de uma mesma lógica de exclusão.

Na trama, acompanhamos Sergei (Grigory Dobrygin) e Natalia (Chulpan Khamatova), refugiados políticos que imigram para a Suécia com suas duas filhas, Katja (Miroslava Pashutina) e Alina (Naomi Lamp), em busca de uma nova vida. A esperança da família é destruída quando o pedido de asilo é rejeitado. Diante da insegurança e do medo, Katja desmaia e entra em um estado de “coma”, desenvolvendo a chamada Síndrome de Resignação, uma resposta extrema à desesperança. Em meio à incerteza, Sergei e Natalia lutam para conquistar o direito de permanência e restaurar a sensação de segurança necessária para que a filha volte à vida normal.

A percepção que temos de certos países é frequentemente moldada por ideias simplificadas. Não se trata de ignorância deliberada, mas de um efeito previsível das narrativas de senso comum. Uma delas é a representação do norte da Europa, especialmente dos países escandinavos, como territórios de bem-estar permanente. Contudo, mesmo em sociedades de alto IDH, contradições emergem. Atraindo refugiados de diversas origens, essas nações abrigam tensões, disfarçadas sob uma superfície de civilidade. Em “O Outro Lado da Esperança” (2017), Aki Kaurismäki já explorava essa realidade, retratando o drama de um imigrante sírio rejeitado na Finlândia por uma burocracia implacável. Se naquele momento o foco recai sobre a crise síria, hoje é a Rússia que ocupa o centro da crítica. Embora o filme de Avranas denuncie a repressão de Putin, seu alvo principal é a frieza de um sistema que, mesmo em sociedades vistas como exemplares, falha em acolher.

Essa frieza é construída de forma precisa desde os primeiros instantes, perceptível antes mesmo de qualquer diálogo, pela ambientação. Cores frias, sobretudo azul e cinza, dominam o cenário, seja nas roupas, seja nos ambientes austeros. Tudo transmite uma assepsia sufocante, onde cada espaço parece repelir a vida. Essa mesma atmosfera se reflete nas falas dos agentes do Estado, que, embora simulem gestos de cuidado, limitam-se a repetir platitudes.

Em uma das cenas mais ilustrativas, Sergei e Natalia sentam-se diante de uma assistente social. A sala é iluminada por uma luz branca cortante, com móveis de linhas duras e paredes vazias. A assistente, com seu sorriso polido e voz neutra, faz anotações meticulosas e oferece palavras de compaixão mecânica. Cada gesto, cada frase roteirizada reafirma a distância intransponível. Na superfície, o acolhimento; na prática, o abandono mascarado pela formalidade.

O filme também acerta ao inserir figuras que oferecem apoio genuíno à família. Primeiro, Adriana (Eleni Roussinou), uma imigrante que também precisou pagar um preço alto para permanecer; depois, Nyman (Ana Bjelkerud), uma senhora sueca que, ao estender a mão, deixa claro que a crítica não se dirige aos indivíduos nem à sociedade como um todo, mas sim a uma engrenagem estatal que desumaniza, condenando os vulneráveis a um novo tipo de trauma.

Nesse contexto, o título atribuído no Brasil pouco dialoga com a doença real que acomete a criança. A Síndrome da Resignação, que afeta centenas de jovens filhos de exilados políticos, é um colapso do corpo diante do medo. Resignar-se é sucumbir ao medo; ser apático é esquiva-se de qualquer responsabilidade. A dor pertence às vítimas, a apatia, aos que assistem. Se o título parece impreciso à primeira vista, é porque não nomeia a doença, mas aquilo que a torna possível. Um Estado que sorri, registra e carimba enquanto vidas inteiras se apagam diante de seus olhos.

Rafa Ferraz

Engenheiro de profissão e cinéfilo de nascimento. Apaixonado por literatura e filosofia, criei o perfil ‘Isso Não é Uma Critica’ para compartilhar esse sentimento maravilhoso que é pensar o cinema e tudo que ele proporciona.

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