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“Estranho Caminho”: Longa flerta com o cinema de gênero e retorna ao mais sombrio dos eventos recentes: a Pandemia de Covid-19 | 2024

Uma obra de arte é um retrato de seu tempo. Dentre os vários eventos que mudaram o curso da história, as epidemias representam um capítulo extremamente relevante. A Peste Negra, que devastou a Europa no século XIV, teve um impacto profundo e duradouro, provocando mudanças significativas na sociedade e, consequentemente, na expressão artística da época. No século XIX, a tuberculose esteve presente na literatura e no romantismo, influenciando muitas obras que, posteriormente, foram retratadas no cinema, desde “Camille” (1936) até “Moulin Rouge” (2001).  Já no século XX, traumas como a gripe espanhola e a epidemia AIDS também deixaram marcas profundas na cultura pop. Em “Estranho Caminho”, é possível observar uma tendência voltada ao trauma coletivo mais recente: o coronavírus. Mais do que um pano de fundo, a COVID-19 está intimamente ligada à história, seja tematicamente ou como artifício para fazê-la progredir. O resultado é um belíssimo trabalho que, embora visto sob uma perspectiva temporal muito específica, tem o potencial de dialogar de formas distintas ao longo dos anos que virão.

Na trama, acompanhamos David (Lucas Limeira), um jovem cineasta que retorna à sua cidade natal para exibir seu primeiro longa-metragem em um festival local. No entanto, ele é surpreendido pelo rápido avanço da pandemia. Em meio às incertezas, David decide buscar uma reconciliação com seu pai, com quem não fala há anos.

Dirigido pelo cearense Guto Parente, “Estranho Caminho” flerta com o cinema de horror, mantendo um bom humor. Pode parecer contraditório, mas essa brincadeira de gêneros coloca o longa em uma posição muito particular, entre o experimental e o convencional. Ao mesmo tempo em que há um exercício imagético interessante, a estrutura é bastante acessível e, para o bem e para o mal, de fácil identificação.

Cada gênero possui códigos que comunicam sentimentos e sensações específicas. O terror, por exemplo, busca provocar o medo, e é interessante refletir sobre o que desperta esse sentimento no contexto pandêmico. Se antes um espirro em uma aeronave causava no máximo um desconforto, hoje ele é quase um  presságio maldito do que está por vir. Outro elemento muito utilizado, e aqui, ressignificado, é o isolamento. David percorre ruas completamente desertas, quase como um vilarejo fantasma. Essa ideia se estende ainda mais com o uso de máscaras (ou o mau uso delas), a impossibilidade de sair de casa ou, pior, de retornar ao lar.

Lucas Limeira é destaque e segura o protagonismo com maestria. Apesar do contexto de desespero crescente, sua atuação evita qualquer tipo de exagero ou exaltação. Suas reações são predominantemente introspectivas, transmitindo a imagem de um jovem contido cuja resposta às situações é de implosão, nunca externalizando de maneira a roubar a cena para si. Todavia, se a personalidade de David favorece o mistério, essa ausência de respostas é atenuada com a introdução de Carlos Francisco, que interpreta o pai. Geraldo é uma figura enigmática e reservada, mas, a partir dele, surgem diálogos que movimentam mais peças no quebra-cabeça. Inicialmente confusas, essas interações rapidamente revelam a razão central de tudo que o filme propõe.

Exibido no Festival de Cinema de Tribeca, “Estranho Caminho” conquistou quatro prêmios na Mostra Competitiva Internacional, incluindo o de melhor filme. No entanto, sua qualidade não depende do reconhecimento internacional, apesar do público nacional ainda valorizar bastante essa validação. Nosso cinema é rico para além de qualquer fronteira, e “Estranho Caminho” é um excelente exemplo disso

Rafa Ferraz

Engenheiro de profissão e cinéfilo de nascimento. Apaixonado por literatura e filosofia, criei o perfil ‘Isso Não é Uma Critica’ para compartilhar esse sentimento maravilhoso que é pensar o cinema e tudo que ele proporciona.

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