⚠️ VEJA OUTRAS CRITICAS DO PAPO EM NOSSO ACERVO (SITE ANTIGO).

ACESSAR SITE ANTIGO
Especiais do Papo

Especial: “A Hora da Estrela”

Longa de Suzana Amaral completa 40 anos de uma hora que não passou

Adaptações literárias para o cinema quase sempre despertam uma boa dose de desconfiança. Ainda assim, o cinema brasileiro tem um histórico bastante positivo nesse campo, com exemplos marcantes de obras da nossa rica literatura. “Vidas Secas” (Nelson Pereira dos Santos, 1963), “São Bernardo” (Leon Hirszman, 1972), “Macunaíma” (Joaquim Pedro de Andrade, 1969), e, para não ficar apenas nos clássicos, “Lavoura Arcaica” (Luiz Fernando Carvalho, 2001) e o mais recente “Grande Sertão” (Guel Arraes, 2024) mostram que é possível realizar adaptações criativas que dialogam criticamente com suas matrizes literárias. Nesse mesmo conjunto está “A Hora da Estrela” (1985), primeiro longa de Suzana Amaral para o cinema, que se volta à última, e talvez mais direta e despojada, obra de Clarice Lispector. Embora siga com precisão a estrutura e os contornos do material base, Amaral não se limita a representar o texto. A diretora traduz para a tela o universo íntimo, silencioso e deslocado de Macabéa, uma jovem alagoana cuja existência parece escapar até mesmo de si própria. Ao dar corpo e voz a essa figura quase etérea, Amaral reelabora a linguagem de Clarice em imagens de rara força poética, afirmando-se como uma das grandes realizadoras do nosso cinema.

Na trama, acompanhamos Macabéa (Marcélia Cartaxo), uma jovem nordestina órfã que vive em São Paulo. Datilógrafa mal remunerada, sobrevive com menos de um salário mínimo, dividindo um quarto de pensão com outras quatro mulheres. Alimenta-se de cachorro-quente e Coca-Cola. Passa as horas vagas vagando pelos metrôs da cidade como uma presença invisível em meio à multidão. Ingênua, submissa e alheia à própria miséria, Macabéa nutre sonhos frágeis de romance e ascensão, enquanto o mundo ao seu redor a repele com silenciosa crueldade.

Em essência, o filme se mantém bastante próximo ao livro, mas essa fidelidade, por si só, não é garantia de qualidade. O mérito da adaptação de Suzana Amaral está justamente nas escolhas sutis que a diretora faz ao transpor a história para o cinema. A começar pela mudança de cenário. Enquanto no romance a trama se passa no Rio de Janeiro, cidade onde Clarice vivia à época da escrita, no filme, a narrativa se desloca para São Paulo, cidade natal de Suzana e onde ela passou a maior parte da vida. Essa substituição revela como Amaral imprime sua própria cartografia afetiva à narrativa, sem romper com sua densidade existencial.

Outra alteração está na personagem Glória (Tamara Taxman), colega de trabalho de Macabéa. No livro, ela é descrita como uma mulher de aparência pouco favorecida: roliça, de cabelos maltratados, mas carioca e filha de açougueiro, elementos que, simbolicamente, lhe conferem fartura e vitalidade, o que basta para atrair o interesse de Olímpico (José Dumont). Já no filme, Glória assume traços de uma personagem típica das pornochanchadas, gênero popular e de forte apelo na época. Ao moldar Glória com essa estética, sensual, debochada, emancipada, Suzana Amaral insere uma crítica mais direta aos papéis sociais atribuídos às mulheres. É na figura de Glória que a diretora trata, sem rodeios, de temas como o aborto e a autonomia feminina, apresentando-a como uma mulher emancipada, que brinca com os homens e assume o controle do próprio corpo. Essa escolha tenciona, através do contraste com Macabéa, os diferentes modos de habitar a condição de mulher em uma sociedade desigual.

Marcélia Cartaxo (Macabéa) e José Dumont (Olímpico)

Olímpico mantém no filme os mesmos traços do personagem literário, sem tirar nem pôr. Ainda assim, Clarice parece lhe permitir um caminho um pouco menos trágico, também ele vindo do Nordeste. No romance, mesmo com sua moral torta, Olímpico encontra uma saída para a própria miséria. Sua trajetória funciona como um contraponto à de Macabéa, acentuando o abismo entre os dois. Já no filme, Suzana Amaral escolhe outro caminho. Em vez de separá-los, os aproxima. Seus destinos já não se opõem, eles confundem-se, convergem, como dois corpos arrastados pela mesma corrente. Ambos são tragados por um mundo que não os quer. Há, inclusive, uma sutil rima visual nas cenas que encerram seus arcos, como se o filme os alinhasse no mesmo gesto de esquecimento. Essa confluência dissolve a ideia de redenção individual e expande o retrato de um desamparo que é coletivo, estrutural. A sequência da cartomante, vivida por Fernanda Montenegro em participação luminosa, também passa por pequenas alterações, mas mantém o essencial. É dessa figura ambígua e teatral que Macabéa, desacostumada a qualquer gesto de afeto, ouve pela primeira vez palavras gentis. Não necessariamente verdadeiras, mas doces o bastante para fazê-la gargalhar, pela primeira e última vez.

E o que falar de Marcélia Cartaxo? Sua Macabéa não interpreta, ela habita! Com uma entrega rara, ela dá corpo e respiro a uma personagem que, no papel, flerta com a abstração, mas que no filme pulsa com uma presença quase tátil. Cada gesto, cada olhar perdido, cada palavra dita com hesitação revela o vazio de Macabéa, além de sua estranha e frágil dignidade. Marcélia não busca a compaixão do espectador, tampouco dramatiza a miséria, ela apenas existe, pequena e desajeitada. Seu trabalho é de uma delicadeza brutal, e reside aí a maior força do filme. Ao encarnar o apagamento, ela ilumina. Ao se recolher, ela permanece. Sua atuação é daquelas que ficam muito depois do fim da projeção, como um sussurro que insiste em não se calar.

Suzana Amaral estreou no cinema com “A Hora da Estrela” aos 54 anos, após criar nove filhos e concluir seus estudos de cinema em São Paulo e depois nos EUA. Até então, havia construído uma carreira em produções para a TV Cultura. Sua adaptação do romance de Clarice Lispector foi amplamente reconhecida pela crítica e pelo circuito de festivais. O filme rendeu a Marcélia Cartaxo o Urso de Prata de Melhor Atriz no Festival de Berlim e consagrou Amaral com o prêmio de Melhor Filme e Melhor Direção no Festival de Brasília. Apesar da aclamação, sua filmografia permaneceu enxuta. Ao longo de mais de trinta anos, dirigiu apenas mais dois longas, “Uma Vida em Segredo” (2001) e “Hotel Atlântico” (2009).

Há algo de suspenso no tempo e na forma como Suzana Amaral traduziu Clarice: não como quem adapta, mas como quem escuta. Escutou a dor muda de Macabéa, escutou os ruídos da cidade grande, escutou o silêncio de uma existência à margem, e transformou tudo isso em cinema. Sua câmera não denuncia nem consola, apenas acompanha, observa, permanece. Quatro décadas depois, “A Hora da Estrela” continua sendo não apenas um dos maiores encontros entre literatura e cinema no Brasil, mas também um lembrete delicado de que o cinema é capaz de lançar uma última luz sobre aquilo que o mundo aprendeu a não enxergar. Uma hora breve. Um brilho fugaz. E depois, o silêncio.

Rafa Ferraz

Engenheiro de profissão e cinéfilo de nascimento. Apaixonado por literatura e filosofia, criei o perfil ‘Isso Não é Uma Critica’ para compartilhar esse sentimento maravilhoso que é pensar o cinema e tudo que ele proporciona.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Botão Voltar ao topo