“Entre Dois Mundos”: estrelado por Juliette Binoche, longa analisa pelo olhar burguês a rotina precarizada dos trabalhadores franceses | 2025
“Todos estão desempregados.”

Na seara dos realizadores europeus que abordam as consequências do capitalismo na vida da classe trabalhadora, Ken Loach (“Eu, Daniel Blake” e “Você Não Estava Aqui”) se consolidou como o crítico mais ferrenho desse sistema através de filmes que expõem as diversas encruzilhadas vividas por pessoas que batalham diariamente em condições quase sempre adversas. Além dos projetos do cineasta britânico, é possível destacar obras como “O Corte”, do mestre grego Costa Gavras, e o francês “Um Outro Mundo”, que também se debruçam sobre a desumanização perpetrada por um neoliberalismo econômico cada vez mais voraz, que estimula uma competitividade inclemente e se mostra avesso aos direitos daqueles que se entregam acreditando na falácia da prosperidade da empresa como se fosse sua. E, como uma espécie de herdeiro desse olhar arguto sobre a precarização da rotina do proletariado, na qual a exaustão é a companheira mais fiel, “Entre Dois Mundos” vai colocar – literalmente, por vezes – sua protagonista no mesmo barco que um grupo de profissionais da limpeza.
Para quem chega desavisado, a trama cria uma espécie de pegadinha ao não revelar de imediato quais são as verdadeiras motivações de Marianne (Juliette Binoche sempre precisa) quando ela, alegando ser uma mulher recém-divorciada que enfrenta dificuldades financeiras, adentra uma agência de empregos na cidade de Caen em busca de melhorias em seu currículo. No entanto, não demora até descobrirmos que a personagem é uma importante escritora e que seu verdadeiro objetivo é vivenciar o dia a dia dos trabalhadores da região como um laboratório para seu próximo livro.
A partir disso, o roteiro vai trabalhar a aproximação dessa figura burguesa com os perrengues enfrentados por pessoas que ralam muito e ganham apenas o suficiente para subsistir, que mal dormem e que mal têm tempo para ficar com a família ou se divertir. São cenas em que sua falta de traquejo com a labuta pesada evidenciam a mesma falta de compreensão – afinal, não há tempo a perder com quem erra – dos empregadores, que logo a demitem com a mesma grosseria já padronizada em quem ocupa tais cargos de comando.
“Entre Dois Mundos” vai assumindo sua brandura à medida que Marianne se estabelece como integrante da equipe de limpeza da barca que cruza o Canal da Mancha, onde fica amiga de Christèlè (Hélène Lambert). Embora siga expondo o quão ingrata é a vida desses seres humanos invisibilizados, que precisam arrumar uma infinidade de camas e limpar dezenas de banheiros em menos de duas horas, a narrativa oferece momentos de ternura, principalmente quando é construída uma espécie de relação familiar entre a protagonista e os demais empregados da embarcação, que praticamente passa a dominar a narrativa, fazendo com que o dilema ético de Marianne (afinal, ela também está explorando essas pessoas) se coloque como um elemento até mais importante do que a análise social instaurada até então.
Em tempos de debate acerca do fim da escala 6X1, “Entre Dois Mundos” fica no meio do caminho ao propor em seu início a observação incisiva de um cenário socioeconômico complexo que massacra milhões de pessoas, mas balança ao não saber desenvolver sua abordagem, rendendo-se a soluções fáceis (chega a ser ingênua a importância dada ao tal livro escrito por Marianne) que impedem o longa de ser aquela pedrada contundente capaz de fecundar reflexões mais profundas o que, consequentemente, o tornaria ainda mais próximo dos murros cinematográficos proferidos por Ken Loach e cia.