“Corisco & Dadá”: Clássico da Retomada ressurge com o cangaço restaurado em 4K | 2024
Não é novidade que o Brasil padece de sérios problemas de memória. Seja por interesses escusos daqueles que se beneficiam com uma tradição de lapsos ou por um desleixo crônico com o passado que acompanha nossa formação como povo, a verdade é que temos uma vocação secular para o esquecimento. Isso, obviamente, estende-se para os nossos patrimônios artísticos, que geralmente não recebem o cuidado que deveriam caso estivéssemos num país minimamente sério no que tange a preservação daquilo que nos representa como povo: a nossa cultura.
Por isso, não chega a surpreender que no início da versão restaurada em 4K de “Corisco & Dadá”, um filme lançado há apenas 28 anos, venha uma menção ao severo estado de degradação química de sua matriz. Fruto de um processo de resgate que envolveu diversos parceiros, as novas cópias deste que é um dos marcos da chamada Retomada chega nesta quinta-feira aos cinemas de todo o Brasil.
Dirigido por Rosemberg Cariry, o longa remonta a tradição oral para contar a história de um casal forjado pelas contradições de uma terra árida, num tempo banhado por sangue e lágrimas. Cangaceiro dissidente do bando de Lampião, Cristino Gomes da Silva Anacleto, o Corisco, raptou e estuprou aquela que seria sua companheira até o fim de sua vida: Sérgia Ribeiro da Silva, a Dadá. Em tom fabular, o roteiro escrito pelo próprio Cariry vai acompanhar, de modo um tanto episódico, os passos do casal que ganhou notoriedade e, claro, inimigos que os perseguiram por décadas a fio. Nesse percurso, o espectador será confrontado com situações que extrapolam as noções de heroísmo e vilania dentro de um contexto em que miséria e brutalidade brotavam do chão seco como mandacarus. Não raro, entre os espinhos provenientes da conduta violenta de Corisco, vez ou outra, surgiam momentos de ternura que foram arrefecendo em Dadá os rancores de uma relação iniciada de maneira tão cruel.
No âmbito visual, a fotografia de Ronaldo Nunes dialoga perfeitamente com a proposta de Cariry ao coadunar a secura de um mundo baseado numa lógica masculina, que tem na figura do cangaceiro um modelo de liberdade e virilidade, com um olhar mais poético – feminino, talvez? – através de planos que, em alguma medida, acabam por romantizar um cenário em que o horror das ações fica abrandada por uma moldura de beleza insistente, que pouco problematiza os desmandos praticados.
É preciso dizer também que este foi um projeto que consolidou dois nomes que se tornariam verdadeiros símbolos do cinema brasileiro nas décadas que se seguiram: Chico Diaz e Dira Paes. O personagem de Diaz é um prato cheio para quem está faminto para mostrar talento. Seu Corisco, que remete em dados movimentos à icônica interpretação de Othon Bastos em “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, é um ser complexo, capaz de ir do total descontrole ao lamento mais profundo. Dira, por sua vez, representa uma mulher forte, que carrega no olhar todas as dores de uma vida de perdas irreparáveis, represadas em seu olhar quase sempre tristonho. São, sem dúvida, duas atuações que chamam a atenção pela maturidade.
“Corisco & Dadá” ressurge, agora em cópias que fazem jus ao belo trabalho operado por todos envolvidos em sua produção, em momento bastante oportuno para que a restauração de obras importantes de nossa rica cinematografia se torne uma prática rotineira. Dessa forma, será possível promover, junto de uma série de outras ações, a devida valorização de parte significativa de nossa memória, para que, assim, ela jamais volte a ser destruída por processos químicos ou por incêndios, efeitos de um crime também irreparável: o abandono.