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“Ainda Não é Amanhã”: longa aborda os conflitos da mulher jovem periférica diante de uma gravidez indesejada | 2025

Assim que estreou no Festival de Sundance em 2020, “Nunca, Raramente, Às Vezes, Sempre” se revelou como um dos mais pungentes retratos sobre as dificuldades enfrentadas por adolescentes que decidem interromper uma gravidez indesejada. E não chega a surpreender o fato de que seja difícil encontrar projetos que abordem o tema de modo tão frontal, como centro do debate, haja visto o quanto ele ainda segue petrificado como um tabu para muitas sociedades mundo afora. Se no extraordinário longa de Eliza Hittman os abusos sofridos por Autum ampliam a dor de sua jornada por um procedimento que lhe devolverá o controle sobre o seu corpo – e, consequentemente sobre sua vida –, em “Ainda não é Amanhã”, estreia de Milena Times na direção de longas-metragens, a opção pelo aborto surge como mais uma entre das muitas pressões enfrentadas por jovens mulheres da periferia que sonham com ascensão social pelas vias do estudo e do trabalho.

A mais jovem dentro de uma família formada por três gerações de mulheres negras, Janaína é moradora da periferia de Recife e conseguiu, com um financiamento obtido através de um programa federal, estudar direito numa universidade privada. Sua permanência no curso depende de sua frequência nas aulas e de seu desempenho acadêmico, algo que realiza com tamanha dedicação que ela se torna monitora do curso, posto esse que lhe garante bem-vinda uma bolsa. Logo na cena de abertura, percebemos que, apesar de ser uma pessoa bastante responsável, Janaína não se priva da vida como qualquer jovem com 18 anos, já que a vemos numa festa com as amigas e, em seguida, terminando a noite no quarto de casa com o namorado. E como a margem de erro para uma mulher nas suas condições é sempre próxima a zero, uma gravidez inesperada colocará em risco tudo aquilo que conquistou mediante muita luta.

É perceptível que Times coloca sua protagonista como alguém que representa a fuga de uma espécie de determinismo que condena a maioria das mulheres do seu entorno ao mesmo destino. Os planos em que a moça está com mãe e avó, cujas vidas o espectador apenas especula, ou com outros integrantes da família, reforçam o ineditismo e a importância que um diploma de ensino superior tem para aquela comunidade, uma expectativa que gera frases como “Lá vem a primeira doutora da família!”, o que só aumenta a aflição vivida pela personagem interpretada por uma ótima Mayara Santos. Além disso, confirmando esse encurralamento diante de uma realidade que se mostra aparentemente inescapável à medida que o tempo passa, surgem enquadramentos que colocam Janaína próxima a crianças brincando nas casas ou nas praças do bairro.

A direção é bastante competente também na criação de um naturalismo que jamais soa forçado. A maneira como as situações vividas pela futura bacharel se desenrolam são bastante críveis, indo das dúvidas que ela precisa sanar sem que os outros percebam até a bela relação que mantém com a amiga, tudo no filme é carregado de um genuíno senso de verdade. São nesses momentos que o humanismo recente com o qual o cinema brasileiro vem trabalhando a imagem de certas figuras, quase sempre estereotipadas, ganha contornos bem singelos. Por outro lado, o filme acaba esbarrando na obviedade quando tenta, em trechos específicos, construir um clima onírico, como, por exemplo, na cena em que Janaína se sente prensada por prateleiras de livros ou aliviada enquanto boia numa superfície que parece metaforizar um útero; excesso justificado, talvez, pela inexperiência de Times em projetos de maior fôlego narrativo.

Obra sobre mulheres e objeto raro no audiovisual brasileiro, “Ainda Não É Amanhã” expõe os conflitos encarados por quem ainda precisa justificar as decisões tomadas em relação ao próprio corpo. Embora chefiem quase a metade dos lares brasileiros, diplomadas ou não, elas ainda sofrem diariamente com a enorme pressão exercida pelo patriarcado, amparado por uma hipócrita moral religiosa, e precisam geralmente recorrer à clandestinidade para fazer valer suas escolhas. Ignoradas de diversas formas (inclusive pelo Estado quando moradoras das áreas mais pobres), jovens como Janaína só podem contar, quando muito, com o apoio de seu círculo mais próximo – algo que conversa com a mãe simboliza – e acordar toda manhã sabendo que cada dia é uma nova batalha a ser vencida, tendo a certeza de que o mais importante diante do inesperado é nunca estar sozinha.

Alan Ferreira

Professor, apaixonado por narrativas e poemas, que se converteu ainda na pré-adolescência à cinefilia, quando percebeu que havia prendido a respiração ao ver um ônibus voando em “Velocidade Máxima”. Criou o @depoisdaquelefilme para dar vazão aos espantos de cada sessão e compartilhá-los com quem se interessar.

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