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“A Substância”: Uma fábula dantesca que usa a caricatura e a ironia para denunciar a objetificação do corpo feminino | 2024

No livro “Teoria do Cinema – Uma Introdução Através dos Sentidos”, os autores Thomas Elsaesser e Malte Hagener discutem a relação entre cinema e o espectador. Em um dos textos, os autores exploram o cinema enquanto corpo, uma teoria particularmente evidente em três gêneros específicos: o melodrama, o erótico e o terror, onde a interação sensorial com o público é mais acentuada. Entretanto, esses gêneros são frequentemente relegados a uma posição secundária por esses elementos considerados vulgares. O horror em particular, com seus inúmeros subgêneros, exemplifica a relação entre o corpo e o cinema, sendo o Body Horror um dos mais proeminentes, popularizado por cineastas como David Cronenberg. Nos últimos anos, porém, esse subgênero tem sido revisitado sob uma nova ótica, sobretudo pelo olhar feminino.

Nesse contexto, “A Substância”, dirigido pela talentosa Coralie Fargeat, que já havia subvertido a ultrapassada e problemática fórmula do “rape and revenge” em seu primeiro longa, “Vingança” (2017), acrescenta novas camadas de complexidade ao debate. O filme promove uma reflexão crítica sobre os padrões estéticos, suas implicações sociais e os efeitos devastadores que esses padrões impõem.

Na trama, acompanhamos Elisabeth Sparkle (Demi Moore), uma renomada atriz que enfrenta o declínio de sua carreira ao ser considerada velha demais. Desesperada para recuperar seu status, ela recebe a oferta de um misterioso laboratório que promete, através de uma substância revolucionária, devolver-lhe a juventude e transformá-la na “melhor versão” de si mesma.

A poesia da arte não se restringe a momentos de sutileza, belos versos ou imagens e sons reconfortantes. O incômodo atravessa todas as formas de expressão artística, e no cinema, há diretores e movimentos que abraçam essa proposta, como o já citado Cronenberg. Coralie Fargeat, por sua vez, aproxima-se da vertente mais recente representada pelos trabalhos de Julia Ducournau, que em 2021 recebeu a Palma de Ouro em Cannes pelo polêmico “Titane”. Também premiado em Cannes, desta vez pelo roteiro, “A Substância” rejeita qualquer sutileza, abordando questões relevantes com uma estética grotesca, visceral e profundamente perturbadora.

O terror e a ficção científica são aliados de longa data, e “A Substância” faz essa combinação sem se preocupar em fornecer explicações detalhadas. A origem da substância, qual empresa está por trás, sua composição ou porque Elisabeth é uma candidata ideal para o experimento—nada disso é relevante. O filme convida o espectador à suspensão da descrença, focando-se em ir direto ao ponto, utilizando uma linguagem objetiva. Isso se manifesta, desde o início, por meio da caricatura. Todos os personagens, sem exceção, são apresentados de maneira exagerada e acima do tom do que se espera de pessoas reais. Todavia, é importante não enxergar isso como uma falha, pois é justamente através da extrapolação da realidade que Fargeat constrói sua crítica, amplificando os absurdos da sociedade para expô-los de forma mais contundente.

Trata-se de uma fábula dantesca que, após o pacto fáustico que impulsiona os desdobramentos da trama, entra em uma escalada do absurdo. A escolha por planos fechados, seja no rosto ou nas partes íntimas das personagens, evidencia tanto o olhar fetichista masculino ao qual as mulheres são submetidas quanto o grotesco das situações. Isso se torna mais perceptível nas sequências dos procedimentos, onde a manipulação das agulhas e a penetração dos corpos é amplificada, intensificando a sensação de desconforto. As lentes grande angulares também desempenham um papel crucial, acentuando a estranheza até mesmo nos momentos mais banais.

Em uma dinâmica de duplo, as personagens Elisabeth e Sue se alternam real e simbolicamente. Destaque para o excepcional trabalho de Margaret Qualley, que interpreta uma personagem arquetípica das novas gerações, marcada por seu desprezo por tudo que considera ultrapassado, acreditando que o novo e o belo são intrinsecamente superiores e, por essas razões, disposta a ir às últimas consequências para preservar esse “bem maior”. Dennis Quaid também entrega uma atuação de primeira no papel do repulsivo Harvey — e não, esse nome não é uma coincidência. Uma clara referência ao ex-produtor Harvey Weinstein, condenado após inúmeras acusações de assédio.

É interessante observar como o papel de Demi Moore em “A Substância” se entrelaça com sua própria trajetória artística. Assim como Brendan Fraser em “A Baleia” (2022), muito da entrega parece vir de uma identificação pessoal e da superação após anos difíceis distante das telas. Moore alcançou projeção global com sua atuação em “Ghost – Do Outro Lado da Vida” (1990) e atingiu o auge em “Striptease” (1996), quando recebeu um dos maiores cachês da história de Hollywood na época. Contudo, após a virada do século, sua presença na mídia passou a ser marcada por motivos pessoais, tornando-se, de certa forma, vítima das pressões que o filme denuncia. Em “A Substância”, Moore retorna com força total, entregando uma atuação digna de todos os prêmios, e, embora o gênero de terror costume ser subvalorizado nessas premiações, ela deixa uma marca histórica e definitiva no gênero.

Rafa Ferraz

Engenheiro de profissão e cinéfilo de nascimento. Apaixonado por literatura e filosofia, criei o perfil ‘Isso Não é Uma Critica’ para compartilhar esse sentimento maravilhoso que é pensar o cinema e tudo que ele proporciona.

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