⚠️ VEJA OUTRAS CRITICAS DO PAPO EM NOSSO ACERVO (SITE ANTIGO).

ACESSAR SITE ANTIGO
PitacO do PapO

“A Melhor Mãe do Mundo”: com atuação arrebatadora de Shirley Cruz, longa revela a dor contida que atravessa a rotina de tantas mães | 2025

Anna Muylaert, nome central do nosso cinema e responsável por obras marcantes como “Que Horas Ela Volta” e “Durval Discos”, mantém o olhar atento para personagens que vivem no limite, em histórias onde intimidade e sobrevivência se cruzam. Em “A Melhor Mãe do Mundo”, exibido no Festival de Berlim e premiado em outros festivais, cada passo de uma mãe e seus dois filhos pequenos é acompanhado de tão perto que a câmera parece partilhar o peso que eles carregam.

A primeira imagem já diz muito. Gal (Shirley Cruz) está na delegacia, supercílio cortado, registrando um boletim de ocorrência. Não há recuo no tempo, nem explicação. Muylaert sabe que o que vemos não é mera exceção, mas rotina. É a partir desse instante que seguimos Gal, conduzindo Rihanna (Rihanna Barbosa) e Benin (Benin Ayo) pelas ruas de São Paulo, como quem empurra uma pequena caravana em fuga.

A câmera cola na personagem e se move com ela, revelando um mundo quase sempre hostil, mas onde ainda cabem gestos de amparo. Há familiares, amigos, conhecidos de um dia só, compondo uma rede de afeto entre aqueles que vivem à margem. Muylaert evita transformar esse percurso em uma sequência ininterrupta de dor. Prefere alternar tensão e respiro, criando momentos em que Gal reinventa o que acontece ao redor e transforma o improviso e o desabrigo em algo parecido com uma aventura para os filhos. É nessas pausas que Shirley Cruz mostra o que existe por trás do sorriso, deixando que o peso se revele apenas nos olhos.

Esse equilíbrio, no entanto, às vezes afasta o filme do naturalismo que também pretende sustentar. Dormir ao relento vira “acampamento” sem calor, frio, insetos ou desconforto. A fome é mencionada, mas raramente sentida. A polícia, historicamente uma ameaça para quem vive na rua, aqui se afasta com facilidade, cedendo espaço a um momento de brincadeira numa fonte pública. A cena é bonita, mas carrega algo de conto, destoando da aspereza do mundo que se quer retratar.

No último terço, a chegada de Leandro (Seu Jorge) muda a temperatura. Ele surge das sombras de uma porta, no fim de um corredor, trazendo um buquê e brinquedos, mas com o olhar carregado. O clima se adensa e logo se abre para uma sequência tipicamente brasileira. O churrasco, as conversas atravessadas, as piadas, o som ambiente que se mistura às falas. É também nesse ambiente que se reconhece a naturalização de abusos, dos silenciosos aos mais evidentes, e a aceitação de um machismo que insiste em se apresentar como inevitável, ou pior, inerente à condição do homem enquanto provedor de sustento e força.

“A Melhor Mãe do Mundo” caminha entre a denúncia e o afeto, suavizando sem apagar a dor. Algumas escolhas afastam a história de um realismo mais cru, mas a entrega de Shirley Cruz sustenta cada passo de Gal e mantém sua presença viva muito depois da sessão acabar.

Rafa Ferraz

Engenheiro de profissão e cinéfilo de nascimento. Apaixonado por literatura e filosofia, criei o perfil ‘Isso Não é Uma Critica’ para compartilhar esse sentimento maravilhoso que é pensar o cinema e tudo que ele proporciona.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Botão Voltar ao topo