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“A Lenda de Ochi”: longa usa o fantástico para iluminar os caminhos que nos separam | 2025

Há histórias que, ao serem contadas, não buscam inventar mundos, mas revelar as rachaduras do nosso. “A Lenda de Ochi” pertence a esse grupo de narrativas que sussurram um tempo distante, mas logo deixam claro que, por trás de florestas densas e vilarejos de madeira, ecoam questões muito presentes. Como se ao encarar um espelho envelhecido, víssemos dilemas inacabados do agora. O filme convida o espectador a cruzar a fronteira entre o mítico e o mundano, para lembrar que, mesmo cercados de criaturas fantásticas, continuamos presos a impasses humanos demasiadamente atuais. Nesse cenário de contrastes, onde carroças e caminhonetes dividem o espaço e a juventude é treinada desde cedo para a violência, “A Lenda de Ochi” constrói seu conto.

A trama acompanha Yuri (Helena Zengel), menina à margem de uma comunidade isolada, em busca de pertencimento num ambiente pouco acolhedor. Embora o lugar pareça mergulhar em tradições ancestrais, bastam poucos gestos para revelar que os verdadeiros monstros, talvez, não estejam apenas nas lendas.

O longa tem início com uma caçada, e chama a atenção o modo como, nesse confronto, é a natureza que sofre primeiro. As flechas atravessam troncos, as árvores ardem, e raramente a violência atinge de fato os personagens. A câmera sabe disso, privilegiando a imagem das feridas abertas na floresta às consequências humanas dos embates.

O filme fascina pelo esmero visual e pela decisão de rejeitar tanto o ultrarrealismo quanto a busca incessante pela verossimilhança, dois dos grandes fetiches do nosso tempo. Com isso, “A Lenda de Ochi” se permite abraçar a fantasia em sua essência: lúdica, quase artesanal. Não há como negar que falta originalidade, Ochi é, assumidamente, uma fusão de referências que vão de Gizmo, de “Gremlins”, ao icônico Baby Yoda, de “The Mandalorian”. Se o ineditismo é escasso, sobra afeto e sensibilidade. A criatura conquista à primeira vista, e até o seu som, longe de sugerir ameaça, reforça a ternura. O desenho sonoro, aliás, tem papel fundamental, funciona como uma ponte linguística, costurando diferentes arcos.

Porém, as relações entre os personagens carecem de profundidade. Pais e filhos, irmãos, ou mesmo o elo entre Yuri e a criatura, tudo se mantém na superfície. Faltam gestos autênticos de reconciliação, sobram ressentimentos pouco desenvolvidos. Até mesmo a ligação com a criaturinha, promissora à primeira vista, se dissipa rapidamente, restrita a raros lampejos de ternura. A beleza, aqui, aparece em raros instantes, logo engolidos por uma urgência de ação que impede qualquer pausa mais longa.

Neste universo de vínculos frágeis, Willem Dafoe se destaca como antagonista. Sua interpretação pende mais para o cômico que para o ameaçador, zombando do próprio poder. Seu personagem, protegido por uma armadura reluzente e frases de efeito, encarna menos uma ameaça real e mais uma caricatura do autoritarismo, um lembrete de que, por vezes, o poder não passa de pose à espera de queda.

No crepúsculo do filme, sobra uma espécie de melancolia, como se estivéssemos diante de um conto antigo esquecido em meio a páginas de um livro já gasto. Entre criaturas improváveis e florestas marcadas pelo fogo, resta a impressão de que, apesar de todas as armas erguidas, ainda buscamos, à nossa maneira, um abrigo para o que é estranho e um lugar onde repousar aquilo que não entendemos.

Rafa Ferraz

Engenheiro de profissão e cinéfilo de nascimento. Apaixonado por literatura e filosofia, criei o perfil ‘Isso Não é Uma Critica’ para compartilhar esse sentimento maravilhoso que é pensar o cinema e tudo que ele proporciona.

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