“A Filha do Pescador”: Um sensível drama familiar que aprofunda o olhar sobre a pessoa trans | 2024
Nos últimos anos tem sido cada vez mais recorrente o lançamento de filmes protagonizados por pessoas transgênero. E tão importante quanto esse destaque é a mudança de perspectiva que tem ocorrido na forma como um grupo social quase sempre observado pelo viés do exotismo vem sendo representada. A dignificação a partir de uma humanização longe dos estereótipos é o princípio que dá o tom em obras como, por exemplo, os brasileiros “Paloma” (2022) e “Tudo o Que Você Podia Ser” (ainda em cartaz) ou no recém-lançado documentário francês “Orlando: Minha Biografia Política”. E seguindo essa bem-vinda nova onda de projetos que visam quebrar preconceitos, “A Filha do Pescador” surge como mais um título a aprofundar aqueles a quem a tradição audiovisual mundial tratou apenas pela superfície.
Coprodução entre Brasil, República Dominicana, Colômbia e Porto Rico, o longa dirigido por Edgar De Luque Jácome nos apresenta Samuel, um pescador de meia-idade que vive numa ilha do caribe colombiano que precisa rever seus conceitos incrustados após a chegada inesperada do filho com que compartilha apenas o mesmo nome. Amargurado com o passado mal resolvido e rude como quase todos os habitantes do lugar, esse homem solitário não compreende a transformação de Samuelzinho em Priscila, uma mulher trans. E é a partir da convivência entre esses dois seres com tantas contas para acertar que o roteiro, escrito pelo próprio realizador, vai construir uma bonita história de reconciliação mediante a aceitação.
Num primeiro momento, a reação do pai – que traduz todo incômodo que sua chegada traz à ilha – é a de tentar trazer a mulher que está à sua frente de volta para o que podemos chamar de “mundo da masculinidade”, exigindo-lhe que ela prenda os seios e corte os longos cabelos. Porém, é Priscila quem vai, aos poucos, impondo a sua presença. Chama a atenção como, no ato inicial, a direção filma os atores em planos distintos como se demarcasse visualmente as fronteiras que os separam em meio a tanta hostilidade e rancor, ao passo que, com o avançar da trama e da gradual aproximação entre os personagens centrais, torna-se notória a opção pelos planos que os colocam no mesmo quadro.
Embora focada essencialmente na relação entre Samuel e Priscila, a sensibilidade de “A Filha do Pescador” se expande também para a maneira como aquele ser, a princípio tratado como uma espécie de alien (termo inclusive verbalizado em certo diálogo), vai sendo naturalmente incorporado à rotina do lugar, sobretudo nas interações com o tio e com o jovem Miguel. Contudo, o filme não exime o espectador das agruras enfrentadas pela personagem-título que, para manter ocultas as razões de sua permanência, precisa lidar com o assédio de uma liderança local que representa toda a hipocrisia que o discurso de ódio esconde.
No entanto, apesar de algumas lacunas deixadas no seu desenvolvimento, nada encanta mais em “A Filha do Pescador” do que o processo de reconciliação que encena. No pouco que se abre para o pai, Priscila relata experiências que chocam. São pequenas confidências que o ajudam a compreender as consequências de uma família que rechaça um de seus membros por conta do preconceito. E, talvez para compensá-la de qualquer horror vivido, temos aqui um dos finais mais bonitos do ano, feito através de uma montagem que reconecta passado e presente, fazendo com que o outrora marginalizado possa dentro de um drama familiar, subgênero cinematográfico dos mais nobres, ser a estrela de um instante de pura poesia. Dignidade é isso.