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“Lilith”: Longa faz releitura do mito da primeira mulher para refletir sobre o feminino contemporâneo | 2024

Nas últimas décadas, Júlio Bressane vem redefinindo suas experimentações cênicas. Trabalhando com elencos bem enxutos a partir de uma artesania que explora no cinema vários elementos do teatro e das artes plásticas, o veterano realizador carioca vem estabelecendo uma forma bem peculiar que chama a atenção pela inventividade. Não é de se estranhar, portanto, que outros cineastas peguem como inspiração os novos ventos soprados pelo autor de “Educação Sentimental” e “Capitu e o Capítulo”. E este parece ser o caso deste “Lilith”, dirigido por Bruno Safadi, que acaba de chegar às telas brasileiras.

Partindo do mito da primeira mulher da Terra, Safadi vai construir sua releitura no decorrer do embate travado pela personagem-título vivida Isabél Zuaa diante da dominação de Adão (Renato Góes), aquele que seria, em tese, o primeiro representante do patriarcado. A abordagem proposta é a simbólica, que geralmente se materializa através dos elementos da natureza num tempo imemorial. O sol e a lua, por exemplo, representam uma clara oposição entre masculino e feminino, tendo o eclipse – repetido diversas vezes – como metáfora maior do reposicionamento que coloca a mulher à frente do homem: “Eu tenho opinião!”, afirma-se Lilith. Os animais, o fogo, e a água – não raro potencializada na forma de tempestades – são outras manifestações naturais que parecem impor àqueles novos habitantes desafios que antecedem a promessa de harmonia.

A fotografia de Lucas Barbi é eficiente ao criar uma atmosfera mítica mesmo dispondo de poucos recursos. Aliada à uma ótima exploração dos cenários naturais, os enquadramentos também conseguem alternar a dimensões ora humanas, ora divinas daquelas figuras únicas. Lilith é, obviamente, a que mais se engrandece nesse tratamento sobrenatural – observe como ela se mostra poderosa na bela cena em que dança entre raios –, apesar do uso um tanto deslocado de filtros que granulam a imagem e da câmera na mão, como se representasse algum mal à espreita que emerge da insubordinação da figura feminina. E do pequeno elenco, Zuaa é quem mais se destaca. A força da mulher agraciada com o dom da poesia que faz valer seu livre-arbítrio, associada consequentemente ao que é demoníaco e às sombras, é impressa em tela com muita propriedade pela atriz portuguesa.

Ao jogar luz sobre um mito antigo e ressignificá-lo, elevando Lilith ao posto de precursora de todas as mulheres – entre elas personalidades históricas – que se ergueram frente às imposições do sistema patriarcal, Bruno Safadi expõe não só o silenciamento de inúmeras vozes, como também a eterna culpabilização do feminino, estabelecida já na pedra fundamental da cultura judaico-cristã, cujo maior contraveneno a reverberar pelos tempos, talvez, seja a sororidade: “Não estamos sós”, diz Lilith a Eva.

Coproduzido por Cacá Diegues, este é um longa que se esforça para oferecer uma transposição menos óbvia visualmente de sua matéria-prima (contando, inclusive, com a filha de sua maior fonte de inspiração estética como produtora), porém, sem evitar a transparência de algumas limitações. Mesmo assim, é capaz de dar seu  recado e deixar em nossas retinas imagens fortes como a que o encerra.

 

Alan Ferreira

Professor, apaixonado por narrativas e poemas, que se converteu ainda na pré-adolescência à cinefilia, quando percebeu que havia prendido a respiração ao ver um ônibus voando em “Velocidade Máxima”. Criou o @depoisdaquelefilme para dar vazão aos espantos de cada sessão e compartilhá-los com quem se interessar.

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