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“Toque Familiar”: longa aposta na sobriedade para versar sobre memória e finitude | 2025

Quando criança acreditava que alguns bichos (insetos, especialmente) recolhiam-se em locais seguros para esperar a morte. Essa improvável consciência, na mente imaginativa de um garoto ainda alheio às teorias científicas que traduzem (e matam) a poesia dos fenômenos, explicaria por que alguns seres difíceis de capturar como lavadeiras e cigarras apareciam praticamente imóveis e indefesos num canto qualquer de um quintal suburbano. Curiosamente, essa teoria infantil veio-me mais uma vez à cabeça durante a sessão de “Toque Familiar”, filme que aborda de maneira bastante sensível temas como memória e finitude.

Na trama, conhecemos Ruth (Kathleen Chalfant) uma cozinheira de 80 anos que, ao ser diagnosticada com demência, é internada pelo único filho em uma moradia assistida. Desde os planos iniciais, é perceptível que a direção de Sarah Friedland (estreando no comando de longas-metragens) trabalhará a jornada de readaptação da protagonista – e sua luta para tentar se manter nesse posto – pelo viés da delicadeza. Na contramão da abordagem mais angustiante vista no excepcional “Meu Pai” (2021), temos aqui a opção pela sobriedade na construção gradual dessa nova rotina que, agora, conta com a supervisão e a companhia de estranhos sem, ao menos num primeiro contato, qualquer vínculo afetivo.

Friedland parece ter aprendido com Kelly Reichardt (de quem foi assistente em alguns projetos) o poder de uma narrativa sem arroubos, que não pesa a mão diante das situações que representa. Já na cena de abertura, quando a dinâmica entre os personagens envolvidos e os diálogos instigam de maneira econômica (e eficiente) a curiosidade no espectador, evidencia-se que a realizadora deseja se manter distante de qualquer exploração melodramática. Dessa forma, são nos momentos aparentemente banais, como aquele em que Ruth observa um outro idoso se desfazendo do roupão para tomar sol, ou quando a câmera percorre lentamente seu braço enrugado durante uma das inúmeras consultas e testes aos quais é submetida, que observamos a necessidade do sentir nesses corpos cada vez mais próximos do fim. Se a impessoalidade do estabelecimento – uma espécie de hotel da terceira idade – e ausência dos entes queridos conferem certa frieza a dinâmicas previamente estabelecidas, percebe-se nela a tentativa de legitimar sua existência (e independência), sobretudo na relação com os profissionais médicos com os quais passa a maior parte do pouco tempo que lhe resta.

Criando uma singela poética do envelhecer, “Familiar Touch” (no original) propõe serenidade ao contar uma história que poderia cair facilmente no sentimentalismo barato. Com uma excelente atuação de uma veterana pouco celebrada, o longa funciona como um curioso coming of age que versa sobre uma fase da vida na qual, contrariando o senso-comum, ainda há muito o que se aprender. E tudo isso encenado na conveniência de um espaço criado por seres humanos para que outros (considerados inúteis para a sociedade capitalista) possam morrer em paz, assim como os insetos de minha infância.

Alan Ferreira

Professor, apaixonado por narrativas e poemas, que se converteu ainda na pré-adolescência à cinefilia, quando percebeu que havia prendido a respiração ao ver um ônibus voando em “Velocidade Máxima”. Criou o @depoisdaquelefilme para dar vazão aos espantos de cada sessão e compartilhá-los com quem se interessar.

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