“Filhos do Mangue”: com grande atuação de Felipe Camargo, filme recusa atalhos e sustenta o risco | 2025

Mais conhecida pelo excelente “Narradores de Javé” (2003), Eliane Caffé, desde sua obra-prima, mostrou o quanto pode ser potente uma narrativa que mistura memória e invenção coletiva. Em “Filhos do Mangue”, ela retoma esse olhar e, embora o resultado não tenha o mesmo impacto, ainda consegue extrair lirismo do contraditório e provocar reflexões incômodas sobre dilemas éticos que resistem a respostas fáceis.
Na trama, acompanhamos Pedro Chão (Felipe Camargo), um homem encontrado ferido e sem memória em uma comunidade ribeirinha. Acusado de desviar dinheiro de um fundo coletivo, ele vira alvo da indignação e revolta dos moradores.
O filme parte dessa premissa para construir uma narrativa que evita caminhos fáceis. Em vez de seguir uma trajetória linear ou buscar respostas diretas, prefere lidar com as tensões que se acumulam aos poucos, no ritmo do ambiente. Outro desafio que o filme se propõe está na escolha de acompanhar de perto um protagonista abertamente deplorável, tal como fez em “Narradores de Javé”. Pedro Chão é um homem difícil de se aproximar, ainda assim, opta seguir por caminho com cuidado e moderação, sem buscar redenção fácil, mas também sem simplificar a complexidade desse sujeito em ruína.
Caffé retoma sua abordagem com um elenco híbrido, reunindo atores profissionais e moradores locais, mas é o veterano Felipe Camargo quem sustenta a espinha dorsal da narrativa. No papel de Pedro Chão, ele encarna o conflito entre o vazio da amnésia e os fragmentos de um passado violento que emergem aos poucos. Sua atuação se apoia sobretudo no silêncio carregado entre uma lembrança e outra, num olhar opaco, hesitante. A narrativa se estrutura a partir dele, e temas como a violência doméstica e a opressão contra as mulheres ganham destaque em momentos específicos. Embora tais passagens nem sempre se integrem com fluidez ao conjunto, funcionam como apêndices relevantes, dando corpo e voz a presenças frequentemente silenciadas.
Entre uma discussão e outra, a trama apresenta pausas. Algumas parecem despropositadas, mas outras carregam um sentido simbólico, contemplativo. Como na sequência dos momentos finais, em que Pedro encontra uma velha rede no mangue e a transforma em ornamento na praia. Não é abrigo, não é reparo, não serve a uma função prática. É uma espécie de oferenda silenciosa feita com os restos do ambiente. Aos poucos, mesmo sob insultos, a comunidade se aproxima. Um gesto mínimo, mas cheio de potência, que propõe convivência pela partilha do mesmo chão.
“Filhos do Mangue” escolhe a lama como matéria estética e constrói seu percurso longe da pressa ou da certeza. É imperfeito, às vezes desconcertado, mas comprometido com a escuta e com o risco.