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“Em Busca do Ouro”: cem anos depois, o ouro de Chaplin ainda reluz

Clássico restaurado em 4k será relançado nos cinemas no próximo dia 26 de junho

Em 1925, Chaplin almejava um filme que durasse mais que as febres passageiras da sua época, e “Em Busca do Ouro” nasce desse desejo de permanência. Para isso, voltou ao passado, mas com os olhos bem abertos para o presente. O século XIX lhe serviu de cenário, mas o que estava em jogo era a precariedade como condição recorrente da existência moderna, um tema que, às vésperas da Grande Depressão, já rondava a periferia do sonho americano.

Nos anos 1920 Chaplin já era uma das figuras mais reconhecíveis do mundo, chegando a estampar a capa da revista Time, algo inédito para um ator de cinema até então. Foi nesse momento de fama consolidada que lançou “Em Busca do Ouro”. Se “O Garoto” o havia consagrado como intérprete da dor com doçura poética, este novo projeto ampliava a escala de sua ambição artística, tratando o riso como uma força capaz de sustentar a leveza mesmo quando tudo pesa.

“Em Busca do Ouro” não se interessa tanto pelo fato histórico em si, mas pelo que ela simboliza. Chaplin viu naquela febre um reflexo da América dos anos 1920, uma sociedade seduzida pela promessa de riqueza, mas que tropeçava em sua própria ganância. Chaplin escreveu, dirigiu, produziu, montou e protagonizou. Não por vaidade, mas por necessidade de controle criativo. “Em Busca do Ouro”, como ele próprio declarou, era o filme pelo qual gostaria de ser lembrado. Talvez por isso o tenha conduzido com uma dedicação quase obsessiva. A famosa cena em que seu personagem cozinha a própria bota exigiu dezenas de takes. Em outra cena memorável, o protagonista dança com dois pãezinhos como se fossem sapatilhas de bailarina, um gesto mínimo, mas o bastante para que o espectador compreenda que, no universo chapliniano, o sorriso não nega a dor.

O que torna “Em Busca do Ouro” uma obra singular é a maneira como Chaplin ocupa a cena. Sua performance atinge um grau raro de maturidade cênica. É palhaço, mímico, acrobata e dançarino, tudo em um só corpo, sempre guiado por um eixo tragicômico. A sequência da cabana prestes a despencar resume essa lógica com precisão, quando ele é lançado de um lado a outro, como se o mundo desabasse ao redor e apenas a coreografia trôpega de seu corpo pudesse adiar o colapso. O risco físico é real, amplificado por efeitos engenhosos e truques de encenação, mas o que nos comove vai além da acrobacia. É a precariedade como condição existencial, enfrentada com a recusa obstinada de perder a ternura. Há também um gesto político em “Em Busca do Ouro”. Aqui a solidão é fruto de uma lógica social que mede o valor de um homem pelo que ele carrega nos bolsos. Ainda assim, mesmo alvo de zombarias, o protagonista não abandona a doçura. O filme inteiro pulsa nesse tom. Os infortúnios cotidianos se convertem em gestos de resistência lírica.

A fotografia não busca a exuberância, mas a nitidez. Cada enquadramento entrega apenas o essencial. Nas cenas iniciais, a fila de garimpeiros escalando a montanha nevada forma uma linha contínua, como formigas enfrentando a vastidão indiferente da paisagem. A imagem revela o quão diminuta pode parecer a esperança diante da maquinaria impessoal dos sistemas. Dentro da cabana, o espaço se comprime, e a câmera se detém nos gestos ínfimos, como quando Chaplin revira uma panela vazia ou tenta esconder o desespero num sorriso solitário. Chaplin compreendia com rara sensibilidade o peso do silêncio. E o cinema mudo, longe de representar a ausência de som, propunha uma escuta diferente, mais íntima, mais humana.

Chaplin não inventou o cinema, mas o orientou a caminhar com graça. Quando entra em cena balançando os ombros, é símbolo de um tipo de humanidade que resiste sem ódio, que sangra sem o espetáculo da ferida, que dança mesmo quando o chão treme sob os pés. Um século depois, assistir a “Em Busca do Ouro” é reencontrar um cinema que ainda sabe olhar para os que tropeçam. É lembrar que rir pode ser um modo de permanecer de pé, mesmo quando o mundo desaba ao redor.

Rafa Ferraz

Engenheiro de profissão e cinéfilo de nascimento. Apaixonado por literatura e filosofia, criei o perfil ‘Isso Não é Uma Critica’ para compartilhar esse sentimento maravilhoso que é pensar o cinema e tudo que ele proporciona.

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