“Animale”: uma fábula ardente sobre corpos que não se deixam domesticar | 2025

Toda lenda nasce das sombras, de histórias que são invisíveis a olho nu. Quando essas ausências finalmente ganham vida, assumindo formas de medo e fascínio, revelam verdades sobre as comunidades das quais emergem. Pense nas figuras de nosso folclore, como a Mula sem Cabeça, por exemplo, que simboliza tradicionalmente o castigo destinado às mulheres que transgridem regras sociais ou religiosas, mostrando medos coletivos sobre sexualidade feminina e a manutenção de valores morais. Ou o Boitatá, entidade que protege as florestas, e que personifica simbolicamente o avanço descontrolado do homem sobre o meio ambiente. São histórias que não surgem de experiências distantes, mas de realidades palpáveis, que ganham contornos de verdade pela força da tradição oral, passando de geração em geração. “Animale” é a encenação do nascimento de um novo mito, que por sua vez emerge do território e das estruturas de poder que os atravessam. A diretora Emma Benestan conduz essa narrativa cruzando o realismo social com elementos fantásticos para expor as tensões de gênero que habitam espaços tradicionalmente masculinos.
Na trama, acompanhamos Nejma (Oulaya Amamra), uma jovem determinada a conquistar seu espaço nas tradicionais touradas da região da Camarga, no sul da França. Porém, quando uma série de mortes violentas abala a comunidade e a figura de um touro selvagem passa a rondar a região, Nejma se vê diante de um mistério que mistura instinto e sobrevivência. À medida que a tensão cresce, os contornos entre o real e o mítico começam a se desfazer.
No início de “Animale”, uma cena aparentemente corriqueira carrega, em sua banalidade, os germes do que virá. Um grupo de homens persegue um bezerro para marcá-lo com ferro quente, rito tradicional da região. Entre risos e gestos quase infantis, eles reduzem o ato à rotina, à brincadeira. Mas o que se desenrola diante da câmera é o domínio de muitos sobre um só. O corpo jovem do animal sendo imobilizado, contido, gravado na brasa entre gemidos abafados. Essa imagem inaugural antecipa o maior trunfo do filme: sua capacidade de transitar, com naturalidade, do concreto ao simbólico, da matéria ao mito. E o faz sem excessos. Emma Benestan não propõe enigmas a serem decifrados. Seus símbolos surgem da matéria viva do corpo. O mistério, aqui, não pede solução, ele pulsa, clama ser percebido.
No centro de tudo está Nejma, única mulher em um universo dominado por homens. Ela treina e trabalha, sempre movida por um desejo de pertencimento que, ao que tudo indica, está ligado à perda do pai e ao afastamento da mãe, quase ausente em cena. Seu corpo, a princípio moldado pela tradição, aos poucos começa a escapar das normas. Há uma dissonância crescente entre Nejma e o mundo ao seu redor, ainda que, num primeiro momento, ela seja retratada como uma figura respeitada em todos os espaços, do rancho ao vestiário da arena.
Após sua estreia oficial na tourada, ela sai com os amigos para celebrar, mas desmaia em meio à euforia. A partir desse episódio, Nejma começa a sentir uma estranha conexão com os touros, como se houvesse uma pulsação em comum. Não se trata de uma simples metáfora, o que o filme sugere é uma mutação física e existencial. É nesse ponto que “Animale” se aproxima do território do horror, mas sem recorrer ao susto fácil ou à linguagem do gênero em sua forma mais convencional. O corpo de Nejma se transforma, sim, mas o que realmente assusta é o modo como sua presença passa a desestabilizar a ordem local. O medo muda de lugar. O que começa como um drama de afirmação individual ganha contornos de fábula, beirando ao horror corporal. Uma insurgência física contra tudo o que tenta domesticar. Nejma não é uma heroína no sentido clássico, ela é algo que ameaça e reconfigura tudo à volta.
Ao fim, “Animale” começa com os pés fincados na terra e aos poucos se eleva em outra frequência, onde o concreto e o simbólico se entrelaçam com naturalidade. Nejma, em sua jornada de transfiguração, deixa de ser personagem para tornar-se figura e assim, Emma Benestan esculpe o contorno de um mito em formação. Um mito nascido da carne.