“Homem com H”: com performance poderosa de Jesuíta Barbosa, cinebio de Ney Matogrosso é um ato emocionado de celebração da liberdade | 2025

Provocativo, ousado, libertário, eletrizante, emocional. São inúmeros os adjetivos que definem “Homem com H”, a cinebiografia de Ney Matogrosso. Escrito e dirigido pelo talentoso diretor Esmir Filho, o filme, me arrisco a dizer, tem o potencial para ser o grande título do cinema brasileiro do primeiro semestre. E não é difícil fazer esse tipo de afirmação porque todas as virtudes para uma obra de excelência estão presentes nessa película. Desde “Cazuza: O Tempo Não Para” (2004) não víamos uma adaptação para o cinema da vida de um artista com tamanha emoção e intensidade.
Transitando entre as diferentes fases da carreira de Ney Matogrosso, passando por sua infância, adolescência, vida adulta e maturidade, o filme é uma jornada através do tempo que o acompanha desde a sua origem humilde; do menino que se liberta das opressões de figuras de autoridade, que quebra preconceitos e se torna um dos artistas mais influentes de sua geração.
Com uma abordagem corajosa desde o princípio, o longa se inicia em 1949, apresentando a relação conflituosa do cantor com seu pai, que foi militar e serviu na Segunda Guerra Mundial. O pai de Ney foi um homem de seu tempo; seu preconceito é fruto de um arranjo social moralista, que na virada dos anos 1940 para os anos 1950 via na virilidade a característica definidora da figura masculina. Apesar da tensão existente entre os dois, o filme, em nenhum momento, faz qualquer tipo de julgamento. O que vemos, ao contrário, é pai e filho, duas pessoas completamente diferentes, genuinamente tentando se entender.
Nesse processo de autodescoberta, Ney Matogrosso sai de casa e cai no mundo; alista-se na aeronáutica e torna-se um militar exemplar. Pelas forças armadas ele tem a oportunidade de ir à Brasília ainda em seus primeiros anos como capital do país; cantando num coral, chama a atenção pelo seu talento; também é lá que ele tem a sua primeira experiência sexual homoafetiva. De volta ao Rio no início dos anos 70, é incentivado por uma amiga a cantar, até que é apresentado a João Ricardo e Gérson Conrad, que ficam impressionados com sua voz. Estava formado ali Os Secos e Molhados, uma das bandas mais emblemáticas da música brasileira. A partir daí, os episódios da vida de Ney Matogrosso são entrelaçados por seus maiores sucessos, fazendo com que o filme se torne um grande musical que nos leva a cantarolar dentro da sala de cinema clássicos como “Sangue Latino” e “Rosa de Hiroshima”.
Sua performance no palco sempre foi intensa e disruptiva, a frente de seu tempo. Por isso, sua ousadia em romper as barreiras de gênero não poderia deixar de ser abordada. A energia e o sexy appeal de suas apresentações se transportaram para suas relações amorosas. As cenas de sexo, todas construídas com propósito narrativo, constituem aquilo o que Ney Matogrosso nunca se sentiu constrangido de experimentar e de viver, porque jamais se rendeu aos julgamentos morais que pudesse sofrer. Dos amores vividos, a relação com Cazuza também é bem explorada: da paixão explosiva à incredulidade e o desespero com o diagnóstico de contaminação por HIV, tudo é exibido com o olhar sensível e delicado de Esmir Filho.
O roteiro do longa também se destaca, pois bem equilibra o fio dramático da narrativa com as cenas musicais. Essas, um capítulo à parte, são bem filmadas e de muito bom gosto estético, e são potencializadas pela excelente fotografia; o design de produção e os figurinos também são um primor. A reconstituição do Rio de Janeiro dos 70 e 80 – sempre muito difícil pelas sucessivas transformações da cidade – está muita bem caracterizada.
Mas para além de tudo isso, talvez o maior destaque do filme seja a atuação de Jesuíta Barbosa. Todo o elenco é bem escalado, no entanto o trabalho de Jesuíta é absolutamente formidável. Com uma atuação intensa e poderosa, o ator parece ter capturado a alma de Ney Matogrosso, incorporando todos seus trejeitos. O olhar penetrante, o corpo lânguido nos palcos, tudo performado com uma incrível dedicação, consolidam o talento de um dos melhores atores de sua geração.
“Homem com H” é uma homenagem à altura a um dos maiores artistas brasileiros, um homem que, sem partidarismos, desafiou a censura imposta pela ditadura e o moralismo puritano de seu tempo. Esse é um filme para ser assistido no cinema.