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“Sobreviventes”: coprodução luso-brasileira faz naufragar um passado forjado por exploração e injustiças | 2025

A heterotopia tem sido um território ficcional bastante visitado por cineastas nos últimos anos. Diversos exemplos podem ser citados, indo dos hollywoodianos “O Menu” (2022) e “Pobres Criaturas” (2023) até chegar ao que há de mais celebrado na seara europeia como “Triângulo da Tristeza”, vencedor da Palma de Ouro em Cannes há três anos. Nestes “não-lugares”, que se desenvolvem apartados das regras sociais e morais vigentes, inversões nos postos de poder são promovidas para que sejamos confrontados com os absurdos de práticas cristalizadas sob um verniz de normalidade.  Com esse horizonte à vista, o diretor José Barahona estrutura a trama de “Sobreviventes”, coprodução luso-brasileira que aporta em nossos cinemas oportunamente na semana de aniversário da invasão portuguesa em 1500.

O longa conta a história de um pequeno grupo de náufragos que, em meados do século XIX, são jogados numa ilha deserta após o navio negreiro no qual cruzavam o Atlântico afundar por conta de uma tempestade. Já em sua primeira imagem – um crucifixo despedaçado sendo levado pelas ondas – “Sobreviventes” deixará claro que naquele local inóspito os princípios que até então regiam as condutas humanas não se aplicam mais, principalmente quando surge a figura de João Salvador (nome bastante apropriado, diga-se), um escravizado que se mostra mais apto a resistir aos desafios impostos ali e que logo acaba assumindo uma posição de liderança. Com isso, forma-se uma nova hierarquia social na qual características outrora relevantes fora daquele contexto como cor da pele, posses, formação acadêmica e fé pouco ou nada importam, sobretudo quando uma situação extrema coloca em xeque e deteriora qualquer traço de civilidade.

Aos poucos, o roteiro escrito por Barahona e pelo célebre escritor angolano José Eduardo Agualusa vai desconstruindo conceitos como fidalguia (mesmo que “consciente”) e religiosidade em personagens que se mostram controversos à medida que são colocados frente ao desespero e à incerteza. Não à toa, o preto-e-branco de baixo contraste no qual o projeto foi filmado serve tanto para aumentar a sensação de deslocamento de uma realidade mais palpável como também para representar um gradual desbotamento das fronteiras que separam esses seres que vão aprender a ressignificar a visão turva que possuem um do outro.

Questionando a possibilidade da existência de um olhar mais igualitário a partir de um passado forjado sob injustiças, “Sobreviventes” acena – ao som das batidas das ondas e da voz carregada de ancestralidade de Milton Nascimento – para uma comunhão que se mostra mais como um desejo do que como a observação de uma utopia. Ao criar esse pequeno mundo que une à força pessoas de origens e pensamentos distintos, a obra metaforiza o nascimento de uma sociedade que precisou digerir o horror que embalou a sua formação e que, sem ignorar essa gênese nada nobre, pode, quem sabe, não precisar de mais quinhentos anos para se tornar uma realidade.

Alan Ferreira

Professor, apaixonado por narrativas e poemas, que se converteu ainda na pré-adolescência à cinefilia, quando percebeu que havia prendido a respiração ao ver um ônibus voando em “Velocidade Máxima”. Criou o @depoisdaquelefilme para dar vazão aos espantos de cada sessão e compartilhá-los com quem se interessar.

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