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“Pecadores”: longa celebra o blues, desloca o horror para o centro da crítica e escancara o ciclo de exploração da cultura negra | 2025

Existem parcerias no cinema tão marcantes que é difícil pensar em um nome sem imediatamente lembrar do outro. Martin Scorsese e Robert De Niro construíram juntos uma das filmografias mais influentes da história do cinema. Paul Thomas Anderson e Daniel Day-Lewis, embora tenham colaborado apenas em três ocasiões, formaram uma das duplas mais potentes do cinema contemporâneo. Ingmar Bergman, por sua vez, estabeleceu laços criativos profundos com atores como Max von Sydow, Liv Ullmann, Bibi Andersson e Erland Josephson, com quem explorou as complexidades da alma humana ao longo de décadas.

Seguindo essa tradição, Ryan Coogler, jovem diretor de apenas 38 anos, parece ter encontrado em Michael B. Jordan um aliado artístico de rara sintonia. A parceria começou em 2013 com “Fruitvale Station: A Última Parada”, mas foi com “Creed” (2015) e “Pantera Negra” (2018) que ambos alcançaram reconhecimento de público e crítica. Em “Pecadores”, Coogler conduz uma superprodução com maturidade estética e consciência política. Seu cinema concilia a linguagem do blockbuster com um olhar autoral, atento às tensões sociais. A crítica está presente, mas jamais soa panfletária; sua abordagem é incisiva, sem renunciar à complexidade.

Na trama, acompanhamos os gêmeos Fumaça e Fuligem, ambos interpretados por Michael B. Jordan, que retornam à cidade natal com o projeto de inaugurar uma casa dedicada ao blues. Para dar vida ao sonho, eles convocam antigos aliados e contam com o entusiasmo do primo Sammy (Miles Caton), um jovem promissor, filho de pastor, que enxerga na música uma chance de liberdade. À primeira vista, tudo parece se alinhar para uma noite inesquecível. No entanto, conforme a celebração ganha força, presenças dissonantes começam a rondar o cenário, ameaçando transformar o reencontro em um verdadeiro pesadelo.

Embora os holofotes estejam mais voltados a Michael B. Jordan, é possível afirmar que o personagem vivido por Miles Caton assume, de fato, o papel de protagonista, não pelas ações em si, que recaem sobre os gêmeos, mas pela perspectiva. É através de seu olhar, mais contemplativo, que nos aproximamos da trama. Ainda assim, talvez o ponto de partida mais instigante não esteja nos personagens, mas em um elemento central: a música. O blues atua como força vital, símbolo da memória e da resistência negra, expressão de dor e criação coletiva. É nesse terreno, carregado de ancestralidade, que o filme insere um atravessamento inusitado. A música vibra, a cidade respira, mas algo escapa aos olhos. Há uma tensão que se insinua aos poucos, uma presença estranha que ronda os bastidores. Não é um confronto direto, tampouco uma ameaça declarada, é mais sutil, quase imperceptível.

Com o tempo, essa presença revela sua verdadeira natureza. Ela se alimenta do que há de mais vivo. Não cria, consome. E quando enfim se mostra, já está entranhada na cena. É aí que o filme revela sua jogada mais ousada: os antagonistas são vampiros. Criaturas que sobrevivem da vitalidade alheia, sugando a essência para prolongar sua existência. Nesse gesto simbólico, o fantástico se funde ao histórico, e o terror ressignifica a realidade evocando sistemas de expropriação que se perpetuam por gerações. A casa de blues, símbolo de afirmação cultural, é tomada como alvo, e é justamente ali que o ataque acontece. Há algo de perversamente familiar nisso.

“Pecadores” transforma o terror em denúncia e a fantasia em arma. Coogler não suaviza as bordas, tampouco pede licença, ele finca os pés na tradição para mostrar que, mesmo quando a música sobe ao palco, há algo nas sombras tentando silenciá-la. A cada acorde, um gesto de resistência. A cada mordida, o lembrete de que a ameaça nunca foi só sobrenatural. Existir é resistir, e às vezes, é preciso morder de volta.

Rafa Ferraz

Engenheiro de profissão e cinéfilo de nascimento. Apaixonado por literatura e filosofia, criei o perfil ‘Isso Não é Uma Critica’ para compartilhar esse sentimento maravilhoso que é pensar o cinema e tudo que ele proporciona.

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