“Levante”: Filme premiado em Cannes celebra a diversidade enquanto faz refletir sobre intolerância | 2024

“Porque o salário do pecado é a morte…”  A frase extraída das páginas sagradas pichada num muro após um ataque à casa da protagonista de “Levante”, diz muito sobre o momento atual,  onde o fundamentalismo religioso se apega ao chamado ‘olho por olho, dente por dente’ de Êxodo 21:24 e se esquece que o amor é o princípio de toda sabedoria…. e que depois dessa frase escrita em letras nervosas no muro diz  que ‘o dom gratuito de Deus é a vida eterna’.

A bíblia passou a ser usada para justificar explosões de ódio e para espalhar preconceito e intolerância. Esse é dos muitos diálogos que a diretora Lillah Halla e a roteirista Maria Elena Morán estabelece no longa que acaba de chegar no circuito e que conquistou a marca de 20 prêmios, se firmando como um dos filmes brasileiros contemporâneos mais premiados e exibido em festivais. Entre as premiações, se destacam os títulos de Melhor Filme pela crítica Fipresci em Cannes, Melhor Filme Ibero-americano em Palm Springs, Melhor Filme em Biarritz, em Montreal (Fierté), no Mix Brasil e no FestCine Aruanda, além de Melhor Direção e Montagem no Festival do Rio.

A história acompanha Sofia (Ayomi Domenica), uma jovem atleta de 17 anos que, às vésperas de um campeonato de vôlei decisivo para sua carreira como esportista, descobre estar grávida. Na tensão do momento, ela só tem uma certeza: não pode se tornar mãe no momento. Sofia, então, sem ver outra alternativa, decide interromper a gravidez de forma clandestina o que acaba cruzando seu caminho com um grupo fundamentalista que está disposto a detê-la para que ela não realize o aborto custe o que custar. Entretanto, Sofia está decidida do que quer e conta com uma vasta rede de apoio, como sua treinadora Sol (Grace Passô) e seu pai, João (Rômulo Braga). Mais do que apoio, Sofia pode contar com o amor da grande maioria das pessoas que estão à sua volta.

É preciso ressaltar a habilidade da recém chegada ao jogo, Lillah Halla, em trabalhar diversidade conjugando com um tema tão polêmico e que passou a se tornar uma pauta fortíssima da extrema direita. A construção do suspense é crescente e também a maneira como o roteiro vai destrinchando o tema sem ser panfletário ou pedante. “Levante” tem sua função social muito clara, que é a de alertar que é preciso ver além da bolha, mas sem oprimir o espectador pra escolher um lado. Fazer pensar é o objetivo aqui.

Enquanto essa pauta vira uma luta de braço para engajar político X e Y, os dados são alarmantes: dados da Organização Mundial de Saúde mostram que 25 milhões de abortos inseguros são realizados anualmente no mundo. O mesmo levantamento também concluiu que complicações decorrentes de abortos desamparados e clandestinos são a quarta maior causa de morte entre gestantes. Segundo a Pesquisa Nacional do Aborto de 2021, uma em cada sete mulheres/pessoas com útero de idade próxima aos 40 anos já passaram por pelo menos um aborto, sendo que mais da metade delas (52%) interromperam a gravidez com menos de 19 anos. O estudo também concluiu que 81% das entrevistadas professam alguma religião, sendo que mais de 70% são cristãs. Ou seja, pessoas que não têm condições ou não desejam seguir com a gestação interrompem a gravidez, independente da legislação ou de qualquer religião.

“Levante” fomenta debates e é um projeto que orgulha o cinema nacional, mas também deixa um gosto ruim, aquele quando realizamos que a humanidade é um lugar cada vez menos acolhedor, onde a violência da intolerância toma o lugar da compreensão e do debate sadio. Que Deus nos livre do homem de bem!