“Caracas”: Trama é viagem sinuosa por uma Nápoles assombrada pelo ressurgimento do fascismo | 2024
Desde “Gomorra”, filme dirigido por Matteo Garrone e lançado em 2008, a Itália vem retomando uma tradição audiovisual ao apostar cada vez mais em produções que traçam panoramas sociais a partir da exposição do caldeirão fervente que se tornou o seu território, especialmente as regiões sob o domínio de mafiosos. De lá para cá, obras como “Suburra” (tanto o filme quanto a série) têm consolidado no imaginário popular um cenário que desconstrói qualquer visão romantizada que ainda possa existir daquele país. Marco D’Amore, diretor e protagonista de “O Imortal”, longa derivado da série “Gomorra”, expande em “Caracas” esse olhar sobre uma Nápoles que, além das já conhecidas práticas criminosas que assolam suas ruas, encontra-se às voltas com uma xenofobia crescente e o ressurgimento de práticas fascistas.
A trama parte da apresentação do personagem-título, interpretado por D’Amore, enquanto ele participa de uma reunião de skinheads, deixando evidente sua adesão a movimentos de extrema direita. É durante uma violenta e coordenada noite de agressão a imigrantes árabes que Caracas terá uma espécie de epifania ao ficar frente a frente com um homem esfaqueado. Agora, dividido entre seus impulsos violentos e esse novo desejo de se converter ao islamismo, este ser em conflito encontrará no amor que sente pela jovem Yasmina (Lina Camelia Lumbroso), uma dançarina muçulmana viciada em drogas, uma nova luta que possa dar algum sentido a sua vida.
Em paralelo a isso, conhecemos Giordano Fonte (Toni Servillo), um renomado escritor que retorna à cidade após muitos anos para dar uma palestra sobre seu novo livro e que se encontra em crise por não se sentir mais tão conectado com a cidade que retratara e sua obra. Após o estabelecimento dessas figuras centrais, a montagem vai instituir uma espécie de fluxo entre passado e presente no qual a busca de Giordano por Caracas, a quem havia conhecido ainda menino, revelará para o espectador os meandros de um território decadente no qual a tensão e o medo potencializaram o que há de pior nas pessoas.
A fotografia nas cenas noturnas valoriza os tons de amarelo e os reflexos nas poças deixadas pela chuva para reforçar essa degradação moral que parece fazer parte da atmosfera de um lugar onde discursos nefastos de monstros como Mussollini e Hitler ainda vigoram. Dessa forma, a estética utilizada por D’Amore soa como herança de seu histórico em trabalhos recentes sobre a máfia, o que confere a “Caracas”, apesar da excessiva alternância de linhas temporais e de alguns maneirismos com ares de sofisticação criativa, uma interessante pegada de thriller policial cujo foco se mostra muito mais direcionado na construção de um panorama sobre violências oriundas do puro ódio, mesmo que seja perceptível, por vezes, uma tentativa de humanização na forma como se resgata a infância difícil de alguém que praticava atrocidades.
Inspirado no livro “Napoli Ferrovia” de Ermanno Rea, “Caracas” propõe uma viagem sinuosa por becos e prédios que estão longe de figurar nos catálogos das agências de turismo. Carregando no olhar do homem que interpreta e na maneira como filma um enorme pesar, Marco D’Amore exibe o repertório adquirido na observação de realizadores como Matteo Garrone e Stefano Sollima para compor um quadro sombrio sobre o velho (e devastador) fantasma da intolerância que volta a assombrar a Itália e tantos outros países europeus.