“Il Buco”: longa de Michelangelo Frammartino é uma impecável metáfora orgânica da colonização | 2023
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Me recordo de uma tirinha que vi anos atrás e que tive o prazer de rever há alguns dias, onde o icônico Flash, super-herói velocista da DC, lê uma biblioteca inteira em um único dia graças a sua super velocidade e, após tal feito, decide parar de correr. O último quadro mostra Flash apreciando um pôr do sol, algo cotidiano que muitas vezes passa despercebido no meio da correria da vida moderna e que provavelmente há muito ele não parava para contemplar. Lembro de ter pensado, na primeira vez que vi essa tirinha, nos filmes que me provocaram a mesma sensação após assistí-los – isto é, me invocaram uma nova visão acerca da vida e do mundo ao meu redor, e me levaram a reflexões e inquietações confortáveis. De maneira surpreendente e fora do convencional, esse é exatamente o propósito que o longa-metragem italiano “Il Buco” (que foi aplaudido de pé por mais de dez minutos no festival de Veneza em 2021 e venceu o prêmio de juri) propõe ao público durante sua exibição e principalmente após ela; dar uma desacelerada e observar as belezas corriqueiras que nos cercam. Mas antes de falar sobre a alta qualidade do teor técnico e linguístico que a obra oferece, quero fazer algo atípico em minhas críticas e comentar a magnitude do abalo que esse filme me causou, relatando minha experiência com ele e a marca que me deixou enquanto pessoa.
“Il Buco” foi uma das melhores recomendações que recebi em 2022 (quiçá a melhor), e tal recomendação foi dada pelo curador do Cine Jardins, Talmon Junior, que é um cinéfilo muito querido em Vitória por se esforçar sempre a trazer cinema alternativo para a capital capixaba. O Jardins abriga filmes sul-americanos, europeus, africanos, médio e extremo-orientais, além de muitos nacionais que não conseguem espaço nas grandes redes do mercado cinematográfico. Em uma das nossas conversas pós-sessão no último dia do Festival de Cinema Italiano 2022, Junior lamentou que a exibição de “Il Buco” não fosse viável fora da grade do festival pelo fato de se tratar um filme totalmente desprovido de apelo comercial, mesmo com sua excelência estrutural e narrativa.
Lembro de ter ouvido ele dizer: “Tem gente que sai no meio do filme porque perde a paciência ou acaba não gostando do ritmo, mas quem fica até o final vive uma experiência arrebatadora”. Não sei se foram exatamente essas palavras, mas foi o que ficou impresso em mim. Conforme dito por ele, algumas pessoas de fato deixaram a sessão e aquelas que ficaram até o fim – e se entregaram de peito aberto à proposta do diretor – comentaram com o Junior sobre como o filme mudou suas interpretações da vida e quão bela tinha sido a experiência que ele lhes proporcionara. Ter testemunhado aquela conversa me provocou ainda mais interesse, e lamentei comigo mesmo que aquela tivesse sido sua última exibição. Contudo, memorizei o nome e não pesquisei nada a respeito, pois sabia que na hora certa o filme viria até mim.
Por sorte, ou trabalho do destino, quis a vida que “Il Buco” entrasse em cartaz duas semanas depois no cinema da Universidade Federal do Espírito Santo, chamado Cine Metrópolis, e me organizei de modo a pegar uma de suas sessões no curto prazo em que permaneceria por lá. E assim, totalmente desprovido de informações sobre o que eu encontraria, fui de peito aberto para uma experiência que poderia ser ótima ou terrível. Cheguei, me acomodei e esperei. O filme começou e ninguém mais entrou na sala. Fomos somente eu e a tela durante 1h30 (e, mesmo sob o risco de soar egoísta, confesso que foi melhor assim).
Assistir a “Il Buco” é uma experiência íntima e extremamente pessoal. A interpretação tende a alternar de acordo com a vivência do espectador, mas a percepção tangível não pode arriscar ser comprometida por terceiros; por isso, agradeci por estar sozinho. Qualquer detalhe poderia ter sido perdido se minha atenção fosse afetada por andanças, comentários, telefonemas inconvenientes e demais ruídos que viessem a surgir durante a exibição caso houvesse mais gente na sala, e isso causaria uma quebra na imersão do exímio e apurado trabalho de som e imagem que o filme possui em suas entranhas – levando ao risco, inclusive, de se tornar tedioso e até mesmo chato devido ao seu desenvolvimento lento e contemplativo. Este é um filme que depende da total atenção de quem o assiste para ser devidamente apreciado em sua essência mais crua.
O diretor Michelangelo Frammartino usa aqui o evento real que foi a expedição ao Abismo Bifurto em 1961 para criar uma fábula repleta de metáforas e parábolas onde o objeto (leia também “local”, se preferir) que é explorado vai perdendo a própria identidade enquanto se torna conhecido, “morrendo” aos poucos à medida em que é penetrado ao cerne. No começo do filme somos apresentados ao edifício Pirelli, que foi o prédio mais alto da Europa durante algum tempo, localizado no norte da Itália, em Milão; e depois somos levados à caverna tida como a mais profunda do mesmo continente durante o velho mundo, evidenciando um contraste curioso que estabelece aqui um estudo de opostos. De um lado a exploração é para cima e no outro ela é para baixo. Enquanto o elevador subia o externo do Pirelli fazendo uma observação de fora, aqui a equipe busca visualizar o que há dentro, como uma procura introspectiva ao âmago daquela região.
“Il Buco”, em tradução livre, significa ‘O Buraco’ – e, com a licença do trocadilho, é um filme incrivelmente profundo. Com um mínimo de falas, que são ditas logo em seu início, o filme se dispõe na tela como uma exposição da rotina ordinária de uma comunidade rústica no interior da região da Calábria (chamada Massiccio del Pollino). A rotina dessa vila é quebrada com a chegada de um caminhão recheado de exploradores em sua carroceria, que vieram de longe para adentrar um dos poucos lugares restantes ainda não mapeados até então. Em paralelo a eles, acompanhamos a vida peculiar de um velho criador de gado, que se espreita entre as árvores de uma colina para vigiar seu rebanho. O cotidiano desse senhor é estabelecido rapidamente, com seus gritos campestres para chamar o gado e marcar sua presença, e o trabalho de atuação é tão excelente que é facilmente esquecível que aquilo seja uma performance interpretativa. Ele assiste a chegada do grupo incomum que lhe invade a paisagem do dia a dia, e o filme passa a se desenvolver em cima do modo como aquela exploração se mostra diretamente ligada à vida desse velho.
Ocorre que o filme, aos poucos, vai se revelando uma alegoria quase muda para a colonização. O velho homem começa a adoecer e desfalecer à medida que os exploradores adentram o poço (caverna, gruta, enfim, o buraco no meio do pasto), e ele logo sai do cenário para ocupar um leito em seu casebre. Quanto mais fundo eles vão, pior fica a saúde do homem. Enquanto o edifício Pirelli era apresentado com suas camadas sociais e hierárquicas bem distribuídas em seus andares, aqui o poço representa uma invasão à identidade e um furto ao indivíduo de si mesmo. É como se Frammartino dissesse que alguns segredos deveriam permanecer ocultos, na penumbra, e recorre a um trabalho incrível de luz e sombras para apresentar as trevas interiores do buraco e, por consequência, do homem.
Frammartino, em suas próprias palavras, busca aqui apresentar algo e não meramente representá-lo, e a escolha acertada do diretor de fotografia, Renato Berta, foi determinante para tornar “Il Buco” a experiência sensorial (e por vezes até claustrofóbica) que é. Berta usa apenas a luz das lanternas enquanto a equipe de espeleologia adentra o Bifurto, colocando o resto da tela em uma escuridão absoluta e levando o público pela mão trevas adentro, com enquadramentos angulares e câmeras primorosamente posicionadas, dando à plateia uma noção precisa quanto às limitações do espaço ao redor. O som também é belíssimo e memorável, sendo inclusive um dos melhores trabalhos que vi nos cinemas em 2022. E por não ter falas em 95% de seu tempo, a interação entre os personagens se dá em ruídos de sinalização e expressões de cansaço e exaustão, como assobios e respirações ofegantes – além de alguns diálogos nativos sem legendas, que marcam um distanciamento cultural intrigante, estabelecendo o “deles” como pertencente somente a eles, como algo inalcançável por identidade.
E como o Flash que assistia ao sol que se punha sem pressa no horizonte, assisti “Il Buco” fazendo um exercício de admiração aos detalhes do meu mundo cotidiano e da beleza que se encontra nele. As coisas mais simples são, por ironia, aquelas que mais fazem a diferença – e é apelando à essa simplicidade que Frammartino compõe uma ópera visual extremamente singular, registrando a diferença que se faz no pouco e a beleza que reside nos mínimos gestos e momentos da vida, seja em jogos de futebol onde a bola se perde ou em gritos que ecoam pelo vale em meio ao nevoeiro denso. Se a arte do cinema não reside no impacto de filmes assim, então eu não sei o que ele é.