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“Eu Não Sou Tudo o que Eu Quero Ser”: Documentário retrata trajetória de fotógrafa tcheca através de imagens libertárias e narração suave | 2024

Em um certo momento de “Eu Não Sou Tudo o que Quero Ser”, durante a “Primavera de Praga” (movimento político na Tchecoslováquia contra o regime autoritário imposto pela União Soviética) a mãe da fotógrafa Libuše Jarcovjáková diz para ela: “Esse não é o momento para arte”. Mas ela estava redondamente enganada, pois é exatamente nos momentos de repressão que a arte deve pulsar e os artistas se expressarem através do seu trabalho, para assim combater o governo autoritário e, quem sabe, um dia alcançar a liberdade. É em cenários sócio-políticos atribulados e sob emoções inquietantes que conhecemos Libuse Jarcovjáková, uma artista que nunca teve grande visibilidade mas que, com esse longa, deixa sua marca.

Narrado pela própria biografada com base no seu diário, o documentário “Eu Não Sou Tudo o que Eu Quero Ser” navega pela sua trajetória através das imagens que ela capturou ao longo da vida, desde a juventude na Tchecoslováquia na década de 1960, até a queda do muro de Berlim em 1989. A diretora Klára Tasovská usa dessa linguagem não muito convencional no gênero para dar uma atmosfera intimista ao longa, onde Libuse revive suas anotações em tom confessional e de resgate, com as boas reflexões que o distanciamento do tempo permite. Para garantir o movimento das fotos há um rico universo sonoro: são vozes, passos, barulhos urbanos, miados e garrafas quebrando que dão vida à Praga e Berlim.

Libuse, que foi impedida pelo governo socialista de frequentar a faculdade por ter uma família “pouco afeita ao regime”, começou a fotografar de forma autodidata, por hobby e para colocar em ordem sua alma atormentada, e com o seu trabalho expressivo, acabou por desenhar um mosaico da época difícil do comunismo. Pulando de subemprego em subemprego, ela não cessa de buscar um sentido pra sua vida, e é através da arte que devagar vai encontrando sua identidade. Suas fotos capturam as nuances da vida e a solidão interna, a descoberta da sexualidade, das drogas, da liberdade de ir e vir ; suas “selfies” nua são marcantes, numa época em que ninguém tirava fotos de si mesmo, ela o fazia. Os registros eram mais caseiros, com imagens mal iluminadas e desfocadas, mostrando apenas partes do seu corpo, representando uma certa vergonha de tudo que passou, dos abortos feitos e dos casamentos fracassados – talvez uma agressão velada.

Sua temporada lúdica e festiva no Japão a tornam razoavelmente conhecida, e lá, as imagens que eram em preto e branco se tornam coloridas, retratando as delícias do capitalismo e a busca por inovações que trazem um frescor ao seu trabalho e o convite para fotografar para a renomada designer japonesa Rei Kawakubo. Mas, como Libuse é indefinida, ela volta pra Berlim e sua melancolia, enfrentando novamente fracassos e duras críticas por não ter um objeto específico em seu trabalho.

Apesar de ter enxutos 90 minutos, o documentário se torna cansativo a partir da metade, pois as imagens semelhantes vão se repetindo e entediando, assim como a sensação de que a fotógrafa se acostumou com sua zona de conforto de artista não-reconhecida e comercialmente fracassada. Ainda que “Eu Não Sou Tudo o que Eu Quero Ser” termine abruptamente em 1989, ele nos traz imagens concretas de um período onde os fatos e as fotos pareciam mais impactantes e não tinham a efemeridade de hoje, onde tudo é descartável, no ritmo louco das redes sociais. Fica no ar a curiosidade sobre Libuse Jarcovjáková, sobre o que ela fotografa desde então, o que a aflige e intriga, e principalmente se ela conseguiu se encontrar dentro de si e dentro do mundo em que vive.

Karina Massud

Formada em Direito, cinéfila desde os 5 anos de idade, quando seu pai a levou para assistir “Superman-o Filme”. Cachorreira, chocólatra, fã ardorosa de séries, músicas, literatura e tudo que emocione.

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