“O Diabo na Rua no Meio do Redemunho”: Uma incursão transversal e hipnótica pelas veredas do clássico de Guimarães Rosa | 2024
“Tudo é pacto.”
Publicado em 1956, o livro “Grande Sertão: Veredas” faz parte hoje do cânone literário nacional. O romance memorialístico que traz o fazendeiro Riobaldo ruminando acerca dos eventos ocorridos nos tempos em que era jagunço – incluindo, entre tantos, os conflitos internos gerados por sua relação com Diadorim – é um verdadeiro marco cultural brasileiro que, não à toa, além das inúmeras traduções mundo afora, foi transposta para as mais diversas linguagens ao longo das décadas. Entre adaptações cinematográficas, destacam-se a primeira realizada em 1965 e a mais recente, um misto de distopia e favela movie lançada neste ano sob a batuta de Guel Arraes; na TV, a adaptação de maior prestígio segue sendo a icônica minissérie estrelada por Tony Ramos e Bruna Lombardi, que foi ao ar em 1985; e no teatro, claro, torna-se impossível não fazer referência à encenação sensorial dirigida por Bia Lessa que, agora, ganha uma versão para exibição nas salas de cinema.
Mas engana-se quem cai na armadilha de pensar que “O Diabo na Rua no Meio do Redemunho” é uma mera filmagem de uma peça teatral para se exibir em tela grande. O que Bia Lessa opera, na verdade, é uma transposição que utiliza, de maneira bastante criativa, as múltiplas possibilidades das linguagens que se colocam à sua disposição. O cenário minimalista, um galpão de fundo negro que consegue nos dar a paradoxal sensação de vastidão do Sertão, é habilidosamente ressignificado pelas escolhas formais de Bia e sua equipe. Auxiliada pela fotografia de José Roberto Eliezer e pela coreografia de Amália Lima, a diretora fornece ao espectador uma gama variada de ângulos – do plano aéreo ao close-up – e de movimentos corporais que impedem aquela desagradável sensação de se assistir a um teatro filmado. Nesse sentido, é incrível também a colaboração de Toni Vanzolini na direção de arte, de Fernando Mello da Costa na confecção dos adereços e do espetacular trabalho do grupo musical experimental O Grivo na composição da paisagem sonora, elementos esses que se mostram fundamentais na construção de uma imersão praticamente inescapável.
E se as soluções estéticas encontradas para construir uma intensa imersão naquele mundo roseano funcionam beirando as margens da perfeição – observe, por exemplo, a sábia decisão de enaltecer o esmero linguístico do autor através do uso de legendas –, o elenco não fica atrás e merece também ser enaltecido. É evidente a unidade, típica de um grupo teatral em total sintonia e consciente da densidade do texto que perpassa boca e alma, numa dinâmica cênica em que cada ator pode experimentar a pele de personagens distintos e até dos animais que habitam a região onde se passa a ação, formando uma ambientação bastante particular. Contudo, ninguém chega tão longe nesse quesito quanto Caio Blat naquele que, segundo o próprio, é o papel de sua vida. O ator, que já havia encarnado o angustiado Riobaldo no longa de Guel Arraes, parece tão íntimo do personagem que, nos raros momentos em que, no jogo de variações proposto por Bia, ele o “entrega” a uma colega, fica nítido o quanto sua presença e seu domínio daquele universo são imprescindíveis.
Estabelecendo um pacto entre literatura, teatro e cinema, Bia Lessa nos recompensa criando uma das obras mais inventivas a atravessar nossas artes cênicas nos últimos anos. Durante essa travessia, olha para todas as margens possíveis e honra o complexo trabalho de João Guimarães Rosa. E se a memória é imprecisa, como vez ou outra salienta Riobaldo no decorrer de sua contação, ao menos uma coisa podemos dizer que é certa: “O Diabo na Rua no Meio do Redemunho” é uma experiência difícil de esquecer. Deus esteja!