“Um Lugar Silencioso: Dia Um” : Relações de suporte ditam ritmo da percepção urbana do caos silente | 2024
Nós vamos comer aquela pizza
Existe uma beleza inegável no caos. É algo atrativo, magnético, e contraintuitivamente anestésico. Vivenciar um cenário de intenso estresse, sob a pressão entorpecente de estar a um reflexo da morte, gera uma apreciação terrível sobre a própria finitude e atenua a impotência que se tem perante o hipnotizante desconhecido. Uma experiência assim, mas dentro da segurança cinematográfica de um ambiente controlado, é o que se espera ao assistir “Um Lugar Silencioso”, que aqui ganha seu terceiro filme. O exercício de imaginar como seria estar em Nova York no início dos ataques dos seres espaciais monstruosos é determinante para a premissa desse derivado/prelúdio, subtitulado “Dia Um”, que se constrói sobre uma visão de metrópole até então não explorada dentro da franquia.
Dessa vez não é a família Abbott o centro da trama, e de igual maneira não temos John Krasinski comandando a produção. É uma história nova, com rostos novos (exceto o de Djimon Hounsou) e uma abordagem diferente aos dramas humanos. Sob a direção e o roteiro de Michael Sarnoski, Lupita Nyong’o e Joseph Quinn apresentam interpretações sensíveis e repletas de passagens onde as trivialidades da vida se transformam em combustível para a sobrevivência de ambos. A relação que se estabelece entre Sam e Eric, personagens da vencedora do Oscar e da estrela coadjuvante da 4ª temporada de “Stranger Things”, é o que converge a narrativa para um equilíbrio cênico onde ambos brilham e colaboram entre si enquanto exploram a necessidade pela banalidade cotidiana como âncora mental.
A beleza aqui sai dos escombros da cidade constantemente destruída pelo fetiche autodepreciativo estadunidense e assume um caráter comum, de comunidade. A constatação de que a normalidade dali em diante seria só uma memória catapulta emocionalmente Sam e Eric em sua jornada pelo último resquício dos velhos costumes, rendendo uma tratativa de aceitação à morte iminente convertida em gritos tempestuosos e apegos a passados distantes. É um filme humano, que se baseia em traumas para emplacar superações conquistadas através da colaboração entre diferentes. É curioso, inclusive, que o lançamento esquente a “Divertida Mente 2” trabalhe também a questão latente das crises de ansiedade – como se o cinema estivesse empenhado em comunicar em conjunto as tempestades internas individuais.
No entanto, apesar de reconhecer a delicadeza com que a jornada do filme foi delineada, devo confessar que não consegui me importar com qualquer um deles em hora nenhuma. O senso de urgência está presente, mas não o de risco. É como se o roteiro os mantivesse seguros demais o tempo todo, mesmo a despeito de colocá-los em situações de risco mortal. O filme trabalha fatores humanos mas não atinge intimamente seu público em nenhum momento, mesmo falando justamente de relações emocionalmente íntimas. O ponto mais alto do filme está no convite que é feito ao público à uma contemplação sobre as tantas histórias não contadas de vidas ordinárias vitimadas na invasão. É mais fácil se importar com aquelas pessoas que saíram de cena tão rapidamente quanto entraram do que com os próprios protagonistas.
Com um dinamismo que lembra o de “Cloverfield: Monstro” (2008) e um gato que não mia nem ronrona nunca, o filme tropeça em estabelecer aquilo que seria determinante para justificar sua existência: o estabelecimento da ameaça. Esteticamente é lindo, com uma bela fotografia de contraluz e um design de produção que dimensiona muito bem os horizontes de Nova York, mas por mais caótica que a luta pela sobrevivência de Sam e Eric seja, o que faltou, ironicamente, foi abraçar o caos e se permitir riscos angustiantes. Mesmo com bons sustos e uma ou outra conveniência facilitatória do roteiro, o filme parece um recorte previsível do todo que Krasinski criou. O que é visto em tela parece não se importar se o público se preocupa com Sam e Eric ou não, dando um gosto pós sessão de que assistiu-se a um produto caça níquel desvirtuado, embora interessante, de uma indústria famigerada por sugar monetariamente suas boas obras até a última gota de centavo.
O lugar do título não é mais tão silencioso, mas faz parte. A tentativa de reinvenção foi válida, e foi legal ter conhecido personagens novos no contexto dos filmes de 2018 e 2021. Resta agora saber se a esperada continuação da saga dos Abbott se conectará aos personagens dessa prequela. Isso só o próximo filme dirá. Por enquanto, ficamos com esse aceno daquele mundo sonoramente quieto, mas intimamente perturbado. Torço pela expansão do universo, pela retratação de mais histórias comuns, e por uma conexão mais profunda com as aflições que aceleram o peito – porque o filme da vez até tem alma, mas faltou colocar coração.