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“Disfarce Divino” : Questionando dogmas, filme francês abarca polêmica enquanto argumenta divindade e profanação | 2024 

Se o Vaticano souber que o Seminário está infiltrado por mulheres, será o apocalipse

Hoje em dia é de amplo conhecimento que a palavra apocalipse, em tradução literal do vocábulo grego αποκάλυψις (ou “apokálypsis”), signifique “revelação”. Tal termo é formado por “apo”, que indica “tirado de”, e “kalumna”, que nesse contexto se denomina “véu”. Desse modo, “tirado do véu”. Revelado. A promessa bíblica de que no fim dos tempos nada ficará escondido é uma linha profético-doutrinária curiosa se for levada em conta a quantidade de segredos que a igreja católica mantém. “Disfarce Divino”, filme da cineasta francesa Virginie Sauveur, se ergue, nesse contexto, como uma provocação ferrenha a um pragmatismo persistente que merece abertura para diálogo e análise de todas as partes propostas na uma hora e meia de sua duração.

Antes de prosseguir, deixe-me trazer à luz que não sou anticatólico ou antirreligioso; algumas das pessoas que mais admiro e que cuja fé me soa mais sincera são justamente praticantes do catolicismo. Contudo, assim como os mais próximos a mim bem sabem, discordo de muitos dogmas e conceitos que tal religião apresenta. Desse modo, minha opinião e a abordagem do filme em muito se parecem. Existe um notável respeito àquilo que é tido como credo e regra, mas ao mesmo tempo há espaço também para a contestação. Embora “Disfarce Divino” pareça ser um filme erguido em pilares de afronta, seu nítido objetivo não é confrontar os católicos ou tecer ofensas contra a igreja, mas sim promover um debate necessário dentro e fora das paredes de seus templos.

O título original, “Magnificat”, faz referência direta ao cântico de Nossa Senhora, porém não em tom de heresia ou blasfêmia, mas como devoção ao sagrado presente na feminilidade. A trama gira em torno de Charlotte (a excelente Karin Viard, de “A Família Bélier”, 2014), uma chanceler da Igreja que se vê diante do inusitado dilema ocasionado pela morte do padre cinquentenário Pascal Foucher, que se revela uma mulher em seu atestado de óbito. Foucher, querido em sua diocese, viveu uma vida plena de comunhão com Deus sem levantar suspeitas de sua verdadeira identidade, e isso leva Charlotte a uma investigação intensa sobre aquela figura agora enigmática que se dispunha a ser velada.

O que fazer com tal informação? Mantê-la em segredo ou levar às autoridades e à mídia para enfrentar séculos de uma cultura religiosa patriarcal? Charlotte, enquanto católica e chanceler, deve tomar qual decisão? É nesse contexto que o roteiro joga o público, enquanto a vida de um padre mulher é revirada atrás de respostas comprometedoras. Além desse fator, há também uma questão familiar a ser resolvida por Charlotte: a revelação ou não acerca do pai de seu filho, um adolescente de 15 anos, que insiste em conhecer mais sobre a própria origem. Com isso, graças a elementos narrativos que entram em cena para levar a protagonista do ponto A ao ponto B, o miolo do filme acaba adquirindo uma barriga que o torna mais pesado do que o necessário, mas que se faz valer para abordar outro dogma católico a ser discutido.

“Disfarce Divino” não é um filme político, ou um manifesto avesso ao ser católico; não é também um filme sobre um homem trans que decidiu se colocar em sigilo numa posição de orientador religioso. Na verdade, é difícil até mesmo conceber o padre Pascal Foucher como um indivíduo trans. Ele não era uma mulher que se identificava como homem, mas sim uma mulher que se submeteu a tratamentos hormonais para se parecer com um e atender ao chamado divino, porque esse era o único caminho para professar seu ministério. Se isso é uma profanação ou um endosso, o filme não ousa responder. Como um bom cinema francês, ele se contém em fazer as perguntas certas e convidar o público a respondê-las a si mesmo.

Como um estímulo a bedelhar um revisionismo, o filme se estabelece como uma fonte inspiradora de pensamento pró e contra a mudança nas regras que os chefes do estado Vaticano e seus antecessores consentem em defender. Ao falar sem adornos ou engodos sobre uma situação tão delicada – e longe de ser só ficção -, o filme cria um cenário hipotético cuja razoabilidade é absurdamente plena e tangível. Existem limites para a fé? Quem somos nós perante o divino? Como negar o chamado de Deus?

Vinícius Martins

Cinéfilo, colecionador, leitor, escritor, futuro diretor de cinema, chocólatra, fã de literatura inglesa, viciado em trilhas sonoras e defensor assíduo de que foi Han Solo quem atirou primeiro.

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