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“Rapto”: Longa propõe ensaio sobre o absurdo a partir das carências afetivas provocadas pela solidão urbana | 2024

Premiado na Semana da Crítica do Festival de Cannes, “O Rapto”, é um surpreendente thriller psicológico que propõe uma reflexão sobre como a solidão e a carência afetiva podem nos conduzir a atitudes absurdas. Com influências do cinema chinês da primeira década dos anos 2000 e de filmes como “Taxi Driver” (1976), de Martin Scorsese, e “Os Viciados” (1971), de Jerry Schatzberg, o longa de estreia da diretora Iris Kaltenbäck é inspirado na história verídica do sequestro de um recém-nascido.

A trama gira em torno da amizade entre Lydia, uma delicada parteira, e Salomé, sua melhor amiga, que recentemente descobriu a gravidez. Na cena de abertura vemos Lydia correndo apressada pelas ruas de Paris, segurando em uma de suas mãos o bolo de aniversário comprado para a amiga. Ao chegar em seu apartamento, ela encontra seu namorado, Julien, que a aguardava. Lydia está animada e falante, quando é subitamente interrompida por Julien, que revela tê-la traído. Incrédula, ela pergunta ao namorado se ele está apaixonado pela amante. A reposta evasiva faz com que os dois iniciem uma discussão, que culmina com a expulsão de Julien do apartamento. Na sequência, ela vai até o bar onde Salomé está comemorando seu aniversário. Quando ambas estão no banheiro, Salomé diz suspeitar estar grávida, o que é confirmado por um teste rápido, realizado ali mesmo. Aturdida com essa revelação, Lydia esboça um sorriso distante e se compromete a acompanhar a gravidez e a realizar o parto da amiga.

A partir daí o filme vai descortinando a personalidade e o estado de espírito da protagonista, e revela como o impacto dessas duas notícias serão determinantes para as decisões que ela irá tomar durante a trama. Lydia é uma parteira e orgulha-se de seu trabalho. Para ela, ajudar mulheres a trazerem seus filhos ao mundo é um ato dedicado de acolhimento. Sua entrega nos cansativos plantões parecem preencher uma lacuna em sua vida, que é marcada pela solidão. A sequência de cenas que apresentam a sua rotina, o seu trajeto de casa para o trabalho, sempre com o olhar disperso da multidão, reverbera na audiência a sensação de deslocamento e solitude vivida pela protagonista.

É numa dessas ocasiões, porém, que Lydia conhece Milos, um motorista de ônibus com quem ela tem uma relação fugaz e casual, mas que, aos poucos, vai se apaixonando, ao mesmo tempo que segue cada vez mais envolvida com a gravidez de Salomé. Um fagulho de felicidade parece ter tomado novamente o seu coração, o qual viria ser novamente apagado quando Milos deixa claro que não tem interesse em manter um relacionamento duradouro. Mais uma desilusão, mais um mergulho na solidão.

O dia do parto finalmente chega; Lydia faz bem o seu trabalho; traz ao mundo a filha de sua melhor amiga, numa cena muito bem conduzida pelos enquadramentos e pelos movimentos de câmera escolhidos por Kaltenbäck. A emoção comedida de Lydia parece ser uma confusa sensação de felicidade – por Salomé – e de perda, pois ela sabe que a amiga não poderá estar mais disponível para amainar a sua solidão. Ao caminhar pelos corredores do hospital com a pequena Smeé eu seus braços, Lydia esbarra com Milos, que está visitando seu pai internado no mesmo hospital. Numa conversa breve e constrangedora, ela diz sem pensar que a pequena em seus braços é sua filha. A partir dessa mentira, a protagonista passa a alimentar uma fantasia, uma tentativa desesperada de manter um relacionamento amoroso que seria capaz de eliminar a sua sensação de abandono.

Esse é o tipo de filme em que o grau de tensão dos espectadores vai aumentando à medida em que a protagonista vê as opções para sustentar a sua mentira reduzidas. Apesar disso, por mais reprováveis e moralmente condenáveis que sejam as diversas atitudes tomadas por Lydia ao longo da trama, por alguma razão difícil de explicar, não conseguimos simplesmente odiá-la. Talvez esteja aí o grande trunfo do roteiro, já que a personalidade manipuladora da protagonista vai sendo construída ao mesmo tempo em que nos compadecemos do drama existencial vivido por ela. A tentação de fazer julgamentos morais precipitados pode nos impedir de enxergar nuances e as várias camadas de cinzas por trás de um personagem complexo.

O ritmo do filme pode afastar aqueles acostumados com as fórmulas hollywoodianas mais modernas de se contar histórias. Portanto, não espere encontrar cortes rápidos de cena e nem discussões acaloradas entre os personagens. Este é um filme que valoriza as elipses e os planos longos, recursos cinematográficos muito bem utilizados por Kaltenbäck para nos fazer compreender o estado psicológico da protagonista.

“O Rapto” é uma película que nos convida a refletir sobre como as solidões urbanas afetam as relações sociais e a psique humana, trazendo uma segunda camada que procura discutir os impactos da maternidade nas relações de amizade, diferentemente dos relacionamentos românticos, como é comumente abordado.

Vitor Pádua

Advogado que expia o juridiquês com a paixão pela fotografia e pelo cinema.

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