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“Toda Noite Estarei Lá”: Documentário é manifesto de transsexual pela liberdade de culto | 2024

Mulher com aquela cara?

Era meados de 2006 e eu me encontrava dividido. Estava em uma igreja evangélica desde a pré adolescência e anos mais tarde, depois de muito relutar, comecei um relacionamento com um outro rapaz em uma cidade vizinha da minha, no interior de Minas Gerais. Depois de um episódio desagradável, o assunto chegou aos ouvidos de alguns familiares e em seguida aos ouvidos de pessoas da igreja onde eu congregava.

Fui chamado então para uma reunião e nela, o pastor, junto com outros membros da cúpula da igreja, me fizeram a seguinte pergunta: “Rogério, você chegou às vias de fato?” Eu, que não tinha porque mentir, respondi que sim. Me fizeram uma segunda pergunta: “Rogério, você poderia deixar essa prática?”  Eu respondi que essa não era uma pergunta tão fácil de ser respondida, até porque àquela altura já estava em um relacionamento. Um tempo depois, pra resumo de conversa, um culto foi marcado, e ali, junto com outros membros que estavam sendo recebidos, fui desligado do hall de membros da congregação pelo que eles definiram como “desvio de conduta”. Sim, houve uma cerimônia para me deixar ciente que eu não fazia mais parte daquele corpo. Na ocasião eu não me dei conta, mas hoje, com a maturidade que tenho, vi o quanto foram frios, e que daquela forma acabaram por me afastar ainda mais da ideia que eu faço da Igreja de Cristo, que ama e agrega ao invés de lançar fora porque é diferente.

Você pode se perguntar, meu caro leitor: porque estou lento isso? Tão claro como o dia! É que a trajetória da protagonista desse doc é como um espelho pra esse redator, que de uma forma um pouco diferente, mas com a mesma insensibilidade, foi impedido de continuar professando sua fé no lugar onde a princípio se sentia acolhido. O relato de Mel em “Toda Noite Estarei Lá”, documentário que chega essa semana aos cinemas, se parece com a minha história e a de muitos por aí, que são apartados de uma comunidade em função de sua sexualidade.

No projeto sob a direção da dupla Suellen Vasconcelos e Tati Franklin, acompanharemos Mel Rosário, uma travesti de 58 anos defensora dos direitos humanos que sofreu transfobia e foi impedida de frequentar uma igreja neopentecostal de seu bairro. Como protesto, ela vai todas as noites para a porta do local com cartazes, buscando exercer seu direito à liberdade religiosa. O documentário registra o dia a dia de Mel enquanto luta constantemente por justiça, ao mesmo tempo que tenta encontrar brechas para se reinventar e sobreviver num Brasil onde Bolsonaro acabava de se eleger presidente, carregado de princípios conservadores e intolerantes.

O documentário, que ostenta uma personagem de grande magnetismo e força,  destaca a coragem e a fé de Mel ao enfrentar a violência e o preconceito diários, evidenciando um rastro de ultraconservadorismo que ainda encontra muitos adeptos, principalmente num Brasil onde a extrema direita vocifera absurdos contra as minorias e tem na religião respaldo para justificar seu ódio e preconceito travestidos de amor de Deus.

Para entrelaçar esses assuntos (política x religião), Vasconcelos e Franklin partem do ano de 2017, às vésperas de um processo eleitoral conflituoso e que culminaria na ascensão de um extremista, que encontra em Mel uma ferrenha guerreira nas passeatas do #EleNão. O projeto ainda vê o surgir de uma pandemia, que afetaria o modo como as pessoas passariam a se relacionar, mostrando uma Mel afetuosa, tanto para com sua mãe como para todos ao seu redor.  Sempre sorrindo, de cabeça erguida e com sua fé inabalável, ela impacta toda uma comunidade, inspirando todos que cruzam seu caminho a lutar por seus direitos.

Para muitos, “Toda Noite Estarei Lá” poderá ser só mais uma história de alguém que luta pela visibilidade num mundo preconceituoso, que rejeita o que é diferente. Pra mim, o dilema de Mel para ter livre acesso ao seu lugar de culto é um testemunho de fé juntamente com um chamado: o de não me sentir menor porque a igreja me lançou fora. Eu não fui pra frente da minha igreja todas a noites até porque ninguém me impediu de entrar lá, mas os olhares inquisidores faziam um trabalho parecido à época. Por mais que eu tente explicar, jamais poderia traduzir aqui tudo o que senti durante a projeção. Só me resta agradecer Mel por ser tão abençoada, ousada e forte.

Rogério Machado

Designer e cinéfilo de plantão. Amante da arte e da expressão. Defensor das boas causas e do amor acima de tudo. Penso e vivo cinema 24 horas por dia. Fundador do Papo de Cinemateca e viciado em amendoim.

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