“Planeta dos Macacos: O Reinado” : Explorando legados e o mito de César, filme agrega novos valores à saga futurista onde evoluir é lei | 2024
Nós teremos a e-vo-lução
A ficção-científica promove, por meio de alegorias e subtextos, uma nova percepção quanto ao mundo e a realidade que nos cerca hoje. Quando se trata de enredos futuristas, sempre existe um cenário hipotético que coloca para reflexão um possível rumo tomado pela humanidade para que possamos, através dessa nova percepção proposta, considerar um repensar das nossas atitudes individuais e coletivas para evitar a consumação desse futuro. Nesse aspecto, a saga “Planeta dos Macacos”, iniciada nos cinemas em 1968, é visionária em sempre levantar questionamentos sobre aquilo que nos define como humanidade para, em seguida, quebrar aquilo que entendemos sobre nós mesmos. No novo filme, “Planeta dos Macacos: O Reinado”, não é diferente.
Adotando um tom menos contemplativo e mais “etimológico”, o filme debate a ancestralidade através da leitura mitológica estabelecida pelo que Caesar (César, da trilogia anterior) significou em seu tempo e aborda as diferentes vias tomadas pelo seu legado e pela posse de seu nome. A abordagem aqui permite explorar a dualidade sobre os personagens e as múltiplas interpretações daquilo que Caesar planejava para o mundo, e entra em questão uma devoção política tão intensa que pode ser facilmente confundida com uma religião. “Por Caesar”, gritam os invasores, enquanto adotam a selvageria como regra impositiva sobre os “menos evoluídos”.
Apresentando uma nova leva de personagens que se posicionam em um meio de caminho entre os últimos filmes (que mostraram a origem e os primeiros anos da infestação símia) e os filmes clássicos (que mostram um mundo mais árido, com os macacos em uma postura bípede mais aprumada e humanos sendo escravizados e utilizados como gado), o novo filme não exita em também retratar o hoje por meio de ilustrações que comentam a demagogia ambígua que nos permeia nesses tempos onde todo mundo tem voz ativa na sociedade e discursos extremistas se tornam cada vez mais comuns. A criação da imagem do inimigo é trabalhada aqui com um argumento pautado em lideranças bárbaras travestidas de intenções unificadoras. E o nascimento de um líder improvável é o fio condutor desse novo capítulo, agora dirigido por Wes Ball.
A escolha do nome do protagonista não é gratuita. Noah (costumeiramente chamado Noé, em português) é a figura bíblica que salvou os seus de uma grande inundação – o dilúvio, no caso -, e reconstruiu o mundo em cima das ruínas do deturpado mundo anterior. Contudo, o Noah daqui não é um líder nato, ou um salvador predestinado, e nem tampouco um idoso construindo uma arca. Ele é um personagem ativo/passivo, que reage às coisas que lhe acontecem e alavanca a trama por conta das decisões que toma diante das situações que enfrenta, determinado a salvar os seus da ideologia e do regime que se impõem sobre o seu povo. Noah vive uma típica jornada do herói, e se vê obrigado a agir por estar perante os abusos e absurdos da vida. O Noah do começo do filme é um Noah totalmente diferente do visto no final.
Mesmo através de performances majoritariamente apresentadas a partir da captura de movimentos, o elenco entrega trabalhos memoráveis e o roteiro agrega mais riqueza ao universo futurista e primitivo que a franquia ilustra como representação do resultado das ambições atuais. É um filme dinâmico, que inicia uma nova trilogia e que, honestamente, não me apresentou nenhum demérito quanto à sua estrutura ou desenvolvimento. Personagens sensíveis, dilemas ético-morais e interpretações elaboradas sobre o que separa bem e mal; tudo isso em um embrulho digital não só crível como também tangível. Não supera, ao meu ver, os dois últimos filmes dirigidos por Matt Reeves – mas é um dos melhores lançamentos de 2024 e um feito memorável dentro da franquia.