“20.000 Espécies de Abelhas”: Premiado em Berlim, longa oferece uma tocante reflexão sobre identidade | 2023
Primeiro longa-metragem da realizadora basca Estibaliz Urresola Solaguren, “20.000 Espécies de Abelhas” têm início durante as férias escolares. Devido a dificuldades em seu casamento, Ane (Patricia López Arnaiz) decide viajar com seus filhos para o interior, retornando ao antigo vilarejo onde passou a infância. Lá ela encontra refúgio na oficina de esculturas, uma prática que seu pai lhe ensinou. No entanto, este não é um momento desafiador apenas para ela. Seu filho mais novo, Aitor, passa a rejeitar seu nome de batismo e a questionar o mundo ao seu redor em busca de compreender sua verdadeira identidade. Após finalmente encontrar uma resposta, ela se autodenomina Lucía (Sofia Otero), inspirado pela figura religiosa de uma santa castigada por preservar, acima de tudo, as suas convicções. No entanto, essa jornada de autodescoberta a leva a enfrentar as dores da rejeição, que, por mais sutis que possam parecer, corroem seu interior, afetando profundamente sua vida e relacionamentos.
“20.000 Espécies de Abelhas” segue uma abordagem semelhante à da diretora espanhola Carla Simón, caracterizada por sua narrativa realista e pouco afeita ao melodrama. Apesar da temática sensível e da urgência no assunto abordado, Solaguren opta por navegar em águas menos turbulentas, muito embora por vezes trafegue por caminhos estreitos e tortuosos.
A escolha de focalizar nos rostos das personagens, mesmo quando elas estão em silêncio, é uma manifestação clara dessa escolha narrativa. Grande parte do que acontece com Ane e Sofia está intrinsecamente ligado a emoções internas, portanto, ao contemplar suas expressões faciais, somos convidados a conjeturar os sentimentos que as permeiam. A utilização da câmera na mão, com movimentos mais agitados, contribui para momentos de menor calmaria, conferindo à narrativa um senso de realidade e urgência. Essa abordagem cinematográfica de Solaguren proporciona uma experiência mais íntima e emotiva, permitindo que o espectador mergulhe nas complexidades emocionais das personagens e na urgência subjacente à trama, sem recorrer ao sensacionalismo ou à moralização.
Vencedora do Urso de Prata no 73º Festival Internacional de Cinema de Berlim, Sofía Otero se tornou a atriz mais jovem a receber esse prêmio, e, diga-se de passagem, com bastante justiça. O filme, apesar de abordar duas frentes: a de Ane, cujo relacionamento com o marido não vai bem e não há harmonia com a mãe cujos embates frequentes a fazem ficar presa ao passado, não é exagero dizer que a centralidade de tudo está em Lucía. A começar pelo fato de que mesmo o drama materno, em alguns momentos-chave, também é visto na perspectiva da criança.
Toda a jornada que perpassa por Aitor, seu nome de batismo, Cocó (em português, Cacau), apelido dado na escola, até chegar a descoberta de Lucía, é o coração do filme. Em uma sequência particularmente tocante, Lucía visita uma igreja com sua avó e descobre a história da santa que inspirou seu nome. Ao questionar se outra imagem também representa a mesma divindade, a avó revela que, na verdade, é São João Batista. Essa cena aparentemente inocente traz à tona a evolução das concepções de gênero ao longo das épocas, uma vez que São João Batista, em algumas representações artísticas, como as de Leonardo da Vinci, aparece com cabelos longos, sem barba e vestes compridas, algo que hoje associamos às mulheres. Quando a jovem, no começo do filme, chega ao vilarejo, uma das perguntas mais frequentes que ela ouve é sobre seu cabelo longo, sugerindo que talvez seja uma boa ideia cortá-lo para aparentar masculinidade.
Pessoas transgênero são aquelas que se identificam e vivem de acordo com um gênero que difere daquele designado no nascimento. Até 2019, a Organização Mundial da Saúde classificava a transexualidade como uma doença mental, mas esta perspectiva está evoluindo. Na conjuntura atual, em que a violência de gênero se encontra entrelaçada a um discurso conservador hegemônico, é evidente a necessidade premente de filmes como “20.000 Espécies de Abelhas”. Essas obras se tornam instrumentos cruciais para provocar uma reflexão profunda sobre nosso modelo de sociedade e nos convidam a reavaliar questões fundamentais, como a emancipação dos corpos e a busca pela verdadeira liberdade, com o objetivo de possibilitar que todas as pessoas vivam plenamente com a dignidade que lhes é inerente e merecida.