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“3 Obás de Xangô”: lançada com as bençãos de Iemanjá em nosso mar audiovisual, doc é carta sobre nossa capacidade de congregar | 2025

“A amizade é o sal da vida”

A frase que aparece como epígrafe deste texto é repetida algumas vezes ao longo de “3 Obás de Xangô”. Proferida por Jorge Amado, uma das mais proeminentes dentre as autoridades desse ordenamento político-litúrgico criado na Bahia em 1936 por Mãe Aninha, esse misto de verso e mandamento reitera o sentimento e atua como uma espécie de fio que entrelaça os temas levantados pelo documentário dirigido por Sergio Machado.

Ao acompanhar um dos nossos mais famosos escritores e suas interações com Dorival Caymmi e Carybé – outros dois mestres também responsáveis por construírem a noção de baianidade no imaginário brasileiro –, a narrativa discorre sobre os desafios enfrentados na luta diante do preconceito e das tentativas muitas vezes violentas de sufocamento da cultura negra no País, especialmente no que concerne às religiões de matrizes africanas. A partir dos depoimentos desses mestres do campo das artes e dos registros dos encontros entres eles, veremos as muitas facetas da nada fácil, porém, necessária aqui enquanto legitimação do direito ao credo, relação da religiosidade com a política.  Nesse sentido, o autor de “Tenda dos Milagres” se mostra como figura bem mais atuante, tendo, inclusive, já experimentado (mesmo que rapidamente) o posto de deputado federal pelo Partido Comunista Brasileiro em 1946.

O mais bonito em “3 Obás de Xangô” é como o filme estabelece uma conexão intrínseca entre o fazer artístico e espiritualidade. Tanto nas letras e melodias de Caymmi, quanto nas cores das telas de Carybé ou na prosa malemolente de Amado, é perceptível um transbordamento da fé como mais um elemento formador de uma identidade. Por isso, há todo um cuidado nas falas desses agregadores (expostos assim quando são mencionadas as famosas Domingueiras) para aqueles que os ouvem – ou mesmo na apreciação de suas obras – tenham a melhor compreensão possível do quão belos, alegres e dignos de todo o respeito são os rituais do candomblé.

O longa também oferece passagens deliciosas como quando Jorge Amado fala sobre machismo e suas protagonistas femininas e, logo na sequência, vemos Zélia Gattai deixando de lado a aparente timidez para cantar uma música. Além da amada esposa de Jorge, a montagem de André Finotti abre espaço para outras vozes importantes como Muniz Sodré, Gilberto Gil, Itamar Vieira Júnior e Lázaro Ramos para a construção de um olhar mais amplo acerca dos três ícones culturais iluminados pela produção e de uma reflexão sobre a continuidade de seus legados no debate ainda presente nas pautas significativas defendidas por eles até o fim de suas vidas.

Tal como a maré do mar da Bahia – elemento central no trabalho dos personagens-título –, “3 Obás de Xangô” balança sua embarcação narrativa entre a celebração de uma cultura riquíssima, capaz de produzir nomes como os desses seres de pura criação, e a defesa (pelo louvor da amizade) da capacidade humana de congregar. Embora não chegue nas profundezas de um conceito que se popularizou de maneira um tanto idealizada sobre uma terra e um povo que já se mostraram bem mais complexos, o documentário do realizador de “Cidade Baixa” é uma carta trazida pelas ondas, com as bençãos de Iemanjá, e que merece ser lida.

Alan Ferreira

Professor, apaixonado por narrativas e poemas, que se converteu ainda na pré-adolescência à cinefilia, quando percebeu que havia prendido a respiração ao ver um ônibus voando em “Velocidade Máxima”. Criou o @depoisdaquelefilme para dar vazão aos espantos de cada sessão e compartilhá-los com quem se interessar.

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